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Jogos de guerra no fundo do mar

No xadrez geopolítico global, há uma peça importante no fundo do mar. Os cabos submarinos são uma infraestrutura crítica e já entraram na mira de Moscovo e não só. Que consequências poderia ter um ataque a estes ativos e qual o papel de Portugal na defesa destas autoestradas da internet? Ainda esta sexta-feira decorreu em Lisboa um exercício de segurança sobre cabos submarinos promovido pela Anacom.
Sara Ribeiro 26 de Outubro de 2024 às 11:00

É nas profundezas dos oceanos que pode estar uma peça importante do xadrez geopolítico global. Os cabos submarinos, infraestrutura crítica para transportar o grosso das comunicações transatlânticas, tornaram-se um alvo apetecível num contexto de maior belicismo. E, devido à localização estratégica, Portugal tem estado no radar.

 

A ameaça da Rússia aos cabos submarinos do Ocidente tem vindo a intensificar-se. Desde o início da guerra na Ucrânia que o tema tem preocupado o Velho Continente e os Estados Unidos, mas recentemente ganhou novos contornos com o Governo norte-americano a denunciar a criação de uma unidade militar russa direcionada para tentar boicotar as comunicações globais. Eventuais ataques deste tipo poderiam causar danos profundos, tanto sociais como económicos, dada a omnipresença que as comunicações e os dados têm no dia a dia. E seriam necessárias semanas para reparar os estragos causados.

 

A informação da Casa Branca voltou a fazer soar os alarmes numa altura que alguns países já tinham mesmo reforçado a vigilância de ativos subaquáticos – onde também estão incluídos oleodutos e gasodutos –, depois de em 2023 a NATO já ter avisado sobre o risco de um ataque pelo Kremlin às autoestradas da internet.

 

"Há crescentes preocupações de que a Rússia possa atacar cabos submarinos e outras infraestruturas críticas, num esforço para causar disrupção na vida ocidental e ganhar vantagem contra os países que estão a dar apoio à Ucrânia", dizia em maio do ano passado David Cattler, à data secretário-geral para a inteligência e segurança da aliança militar do Atlântico Norte. As declarações à Bloomberg do responsável surgiram depois de as forças de segurança de vários Estados-membros, incluindo Portugal, terem relatado a presença de navios russos a mapear a localização de ativos críticos na Europa e nos EUA, incluindo a dos cabos submarinos por onde passam mais de 95% dos dados da internet. Também tem havido relatos de alegadas atividades semelhantes por parte da marinha chinesa nas águas em torno de Taiwan, mas sem confirmação oficial.

 

Mas, afinal, o que ganharia a Rússia com a guerra debaixo do mar? "Sendo os cabos submarinos um meio de transporte de dados, energia e de informação, em termos militares é um alvo apetecível", começou por explicar Luís Bernardino ao Negócios. O coronel do Exército e  professor na Universidade Autónoma de Lisboa salienta que, dessa forma, num conflito, esse tipo de infraestrutura "será à partida logo dos primeiros objetivos" a traçar.

 

Luís Bernardino, que lidera o recém-criado Observatório dos Ecossistemas e Infraestruturas Digitais, não tem dúvidas de que "um eventual ataque iria ter um impacto muito grande nas operações". Porquê? "Iria neutralizar a comunicação, a cadeia de apoio logístico e até impactar na eletricidade", advertiu. Mas os danos só seriam sentidos se fosse um ataque concertado a todo o universo que gere os dados, o petróleo do século XXI.

 

"Isto é um ecossistema digital, os cabos submarinos não funcionam sozinhos", apontou o professor da Universidade Autónoma, destacando que são necessários pelo menos mais três elementos para a informação chegar a bom porto. Os dados que são transportados nestas infraestruturas, que podem ter mais de 12.000 quilómetros de comprimento, chegam à terra através da ligação a centros de dados instalados nas chamadas "landing stations" que, de forma simplista, são estações de amarração dos cabos à superfície. Estas, por sua vez, têm que estar alimentadas às "power stations", uma espécie de centrais elétricas.

 

O corte de um cabo por si, mesmo que deliberado, não teria, assim, qualquer efeito. Até porque, como lembrou José Barros, especialista do setor, estão sempre a ser interrompidos ao longo da sua vida útil de 25 anos. "Ou porque uma âncora lhe bateu, houve uma avalanche submersa e o cabo partiu-se, ou, por exemplo, devido à pesca de arrasto", exemplificou o antigo quadro da Marconi e da PT. Nestes casos, existe o sistema de redundância. Quando um cabo é afetado, a transmissão pode ser feita por outros, graças aos cerca de 450 cabos que existem a nível mundial.

 

No entanto, um ataque em larga escala poderia ter consequências bem gravosas. "Se houver uma ação concertada e forem cortados vários cabos, aí, sim, é preocupante", apontou José Barros, que foi também consultor sénior da Anacom para a Conectividade Internacional e Cabos Submarinos na Gestão da Inovação da Direção-Geral de Informação e Inovação.

 

Os impactos de um ataque

 

Mas o que poderia acontecer no caso de um ataque deliberado a este tipo de infraestruturas? José Barros explica com um cenário, que considera um pouco "exagerado", mas que ajuda a perceber as potenciais implicações. O especialista refere que se fosse colocada "uma carga explosiva no fundo do mar junto aos cabos que fazem as ligações aos Açores e à Madeira, além do forte congestionamento na rede de internet, ficávamos sem acesso ao multibanco e isso seria só a ponta do iceberg, muitos outros serviços ficariam interrompidos", podendo gerar complicações na distribuição de energia e, consecutivamente, de serviços essenciais como saúde e transportes.

 

Porém, essa situação poderia ser mitigada com a "velha" tecnologia satélite, com uma latência bastante inferior à fibra ótica. O problema é que, para compor os estragos na totalidade, seriam necessárias pelo menos três semanas devido à logística necessária que inclui a disponibilidade de navios de reparação. Esse caderno de encargos estaria alocado às empresas privadas que são donas dos cabos. Em Portugal, por exemplo, a responsabilidade seria da Altice.

 

O impacto relatado por José Barros não se sentiria apenas em Portugal. O mar lusitano poderia servir como interruptor para causar impacto na rede mundial. "Se somarmos todos os cabos que passam pelas três zonas económicas exclusivas – Portugal Continental, Açores e Madeira –, estamos a falar entre 10 a 15% de todos os cabos internacionais", detalhou o especialista. É com estes números como pano de fundo que o país entra no mapa de eventuais alvos devido à importância geopolítica.

 

Portugal no centro do mapa

 

O país tem estado na rota das expedições russas. O último relato data de março de 2023, quando foi detetado um navio russo ao largo de Porto Santo, na Madeira, que estava a espiar os cabos de fibra ótica enterrados em águas portuguesas, como informou na altura o chefe do Estado-Maior da Armada e Autoridade Marítima Nacional, Henrique Gouveia e Melo. O caso ganhou mediatismo por causa da recusa dos militares portugueses em embarcar no Navio da República Portuguesa (NRP) Mondego, alegando razões de avarias na embarcação.

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Polémicas à parte, um ataque aos cabos submarinos na costa portuguesa não seria uma tarefa fácil. Um relatório de 2022 da Comissão Europeia sobre as vulnerabilidades dos cabos submarinos dos 27, aponta Portugal, França e Irlanda como os países que estão a proteger proativamente os seus cabos.

 

O risco de um apagão depende do número de cabos e soluções de redundância. Mas há regiões que acabam por ser mais vulneráveis a problemas caso os cabos sejam danificados. E é aqui que surge o reverso da posição geoestratégica de Portugal, com os Açores a figurar na lista. Isto porque as ilhas acabam por ser zonas mais frágeis por não terem acesso a redes de cabos terrestres densas.

 

Contudo, como o país conta com três pontos de amarração dispersos, acaba por dificultar um ataque concertado, ajudando a mitigar eventuais impactos. As infraestruturas da Altice localizam-se em Carcavelos, Seixal e Sesimbra. Mas está já em curso a construção de um novo cabo submarino de 6.900 quilómetros, pelas mãos da Google, que vai amarrar nos Açores e Sines. Trata-se da primeira ligação direta entre Estados Unidos e Portugal, segundo a tecnológica americana.

 

Este passo vai reforçar, ainda mais, o papel de Portugal no mapa das comunicações globais e tem ajudado a atrair investimentos de gigantes como a DE-CIX, especializada na operação de pontos de troca de tráfego de internet (Internet Exchange Points – IXPs).

 

A multinacional alemã alargou recentemente a sua presença em Portugal, tendo começado a operar no Start Campus, o "data center" de Sines, que esteve no centro da investigação que abalou o Governo de António Costa. E, quando questionado sobre os motivos da expansão, Ivo Ivanov, presidente executivo da DE-CIX, é perentório: "Lisboa, onde incluo Sines devido à proximidade, desempenha um papel vital como porta de entrada para todo o eixo pan-Atlântico", afirmou ao Negócios.

 

Os cabos submarinos suportam o mar de dados que navegam a nível global e não param de crescer, como destacou o especialista de telecomunicações, lançando ainda a ideia de que em breve será preciso criar uma nova internet. E não tem dúvidas de que Portugal será a futura porta de entrada, substituindo Londres que, historicamente, sempre foi o principal destino de interligações das infraestruturas de comunicações.

 

De olhos no alto mar

 

Nos jogos de guerra, a ideia de um ataque a infraestruturas que pudessem gerar um apagão no tabuleiro adversário – como é o caso dos cabos submarinos – é atrativa. No entanto, a sua concretização e eficácia gera dúvidas.

 

"Se se souber onde é que estão os cabos submarinos com maior alcance, transformam-se num alvo. E o aviso e a ameaça subsistem", considerou Luís Bernardino. Nesse sentido, defende que é preciso reforçar a vigilância. "Temos de garantir que esta segurança protege o nosso modo de vida", reforçou.

 

Apesar de sublinhar que um ataque concertado a infraestruturas a 10 mil quilómetros de profundidade seria "extremamente complexo", o coronel do Exército deixa o aviso que "não há nenhum Estado sozinho que consiga garantir a segurança aos cabos submarinos no atual panorama global".

 

O facto de cerca de 15% dos cabos a nível global passarem por Portugal traz "oportunidades, mas também mais responsabilidades", destacou, considerando que, para garantir a segurança de toda esta zona, seria importante trabalhar em cooperação. Uma posição que ganha maior importância em águas internacionais, ou seja, em território de ninguém. O direito internacional tem gerado dúvidas sobre quem comanda determinadas zonas em alto mar, onde passa a maioria dos cabos relevantes para a União Europeia. Quem vigia as zonas de ninguém?  Este tem sido o busílis do problema.

 

José Barros explicou que pode haver algum tipo de vigilância por satélite que permita saber que navios estão a navegar na proximidade dos cabos submarinos. "Mas, caso esses navios se estejam a preparar para um ataque deliberado, duvido muito que não desliguem o ‘transponder’ – dispositivo que emite um sinal de frequência eletrónica – para não poderem ser seguidos pelo satélite", especificou.

 

Caso os ataques estejam a ser preparados através de plataformas submersas, "sejam submarinos ou robôs", em alto mar será difícil alguém detetar, ao contrário das zonas vigiadas onde esse trabalho é feito pela Marinha. "Ou seja, é um risco grande", concluiu o antigo quadro da PT.

 

Já Luís Bernardino não tem dúvidas de que "a única circunstância é trabalhar com as organizações, ou seja, garantir essa segurança no quadro da legislação internacional e no quadro das alianças, nomeadamente da NATO". Um apelo que segue em linha com a posição tomada por Bruxelas este ano depois do ataque aos gasodutos Nord Stream, que ligam a Rússia à Alemanha. Em reação às explosões, o vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia, Dmitri Medvedev, disse numa publicação na rede social Telegram que não tinham "restrições, mesmo morais, para destruir as comunicações por cabo do fundo do oceano" dos seus "inimigos".

 

Após avaliar as implicações deste incidente, que decorreu em 2022, a Comissão Europeia avançou com uma recomendação aos Estados-membros para protegerem os cabos submarinos de ameaças físicas e de cibersegurança. O objetivo é evitar que essas infraestruturas críticas fiquem em xeque num tabuleiro geopolítico cada vez mais tenso e perigoso.

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