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Isto aqui é um pouquinho de Brasil, iaiá

Com o Brasil em plena ebulição, os Jogos Olímpicos arrancam hoje na “Cidade Maravilhosa” sem muita empolgação dos brasileiros. O próprio prefeito do Rio definiu o evento como “oportunidade perdida”.

Kai Pfaffenbach/Reuters
05 de Agosto de 2016 às 13:00
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A 2 de Outubro de 2009, o ex-presidente da República Lula da Silva chorava de alegria com o anúncio, em Copenhaga, que o Rio de Janeiro havia superado Madrid, Chicago e Tóquio e seria a sede das Olimpíadas de 2016, como uma espécie de prémio pelo sucesso económico do país. O que ele não sabia é que haveria pouco para comemorar sete anos depois. Pela primeira vez, os Jogos Olímpicos, os primeiros da história na América do Sul, serão realizados num país mergulhado em depressão.

Após 15 anos de pujança económica, conduzida pelos altos preços das matérias-primas e pela abundância de crédito, o Brasil enfrenta a pior recessão económica desde a Grande Depressão, de 1930, e a maior crise política de sempre - actualmente, o país tem dois presidentes da República, uma afastada temporariamente do poder, Dilma Rousseff, e um em exercício, Michel Temer, e o líder da Câmara dos Deputados pediu demissão, após graves denúncias de corrupção. O desemprego atinge 11,6 milhões de pessoas - "Um Portugal" -, a inflação passa de dois dígitos e a renda do brasileiro não pára de cair. Nunca ninguém imaginou encontrar o país desta maneira.

Inusitado é que nem Lula - que na semana passada se tornou réu na Operação Lava Jato, que investiga o enorme esquema de corrupção na maior empresa brasileira, a Petrobras, por crime de obstrução à Justiça -, nem Dilma, sua afilhada política, assistirão à cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos, hoje, a partir das 20h (meia-noite, em Portugal), no estádio do Maracanã. Pela TV, Dilma, suspensa do cargo há quase dois meses e meio, enquanto o Senado a julga por suposta manipulação das contas públicas, verá ainda o seu vice-presidente, Michel Temer, ser o anfitrião geral da nação. Ela, que preferiu ausentar-se a ocupar um "papel secundário" na festa do maior espectáculo desportivo do planeta, está, porém, optimista com o sucesso da Olimpíada carioca, em contramão com o sentimento geral dos cariocas e dos brasileiros em geral.

"Serão 17 dias de novela"

Assim como cinco em cada 10 brasileiros ouvidos pelo instituto de pesquisas Datafolha, nos dias 14 e 15 de Julho, Duda Itajahy é contra a realização do evento no Rio. No levantamento anterior, de Junho de 2013, 64% dos cidadãos eram favoráveis aos Jogos. "Eu não vou participar dos Jogos nem torcer nem nada pois acho que temos que usar a Olimpíada para denunciar os abusos e roubos que acontecem na cidade e no país. O brasileiro esquece com muita facilidade. Serão 17 dias de novela", disse o designer de "drinks", de 37 anos.

O paulista auxiliar de escritório Isaac também não está empolgado com o Rio-2016. "Acho que não é tão bom, porque o país está ruim. Não tem como você sediar um dos maiores eventos do mundo sendo que sua própria casa não está arrumada, né?".

Desanimada está ainda a jornalista carioca Flávia Lima, que revendeu os seus bilhetes para os Jogos, diante do medo da desorganização, do plano de mobilidade não funcionar, da violência. A cada cinco dias, o número de vítimas de violência no Estado do Rio bate o total de 84 mortos no recente atentado que aconteceu em Nice, em França. Foram 2.083 assassinatos de Janeiro a Maio deste ano, o equivalente a 13 mortes por dia. A um mês do início dos jogos, dois contentores de equipamentos de duas televisões alemãs foram roubados na cidade e um carro da segurança pública foi atingido por um tiro. Flávia cita ainda a revolta com o fracasso de alguns dos legados olímpicos.

Devido a uma grave crise financeira, o governo fluminense fracassou num dos seus principais programas vinculados aos Jogos: a despoluição da Baía da Guanabara. A meta de recuperação total das águas onde serão disputadas regatas da vela já havia sido abandonada no meio do caminho, mas nem a promessa de limpar 80% da baía foi cumprida. A expansão do metro, outro legado, também atolou com o descalabro das contas do governo estadual. Depois de sucessivos atrasos, a Linha 4 - que terá 16 quilómetros de trilhos entre a Barra e Ipanema - deverá ser aberta oficialmente apenas hoje, dia da abertura dos jogos. E, mesmo com atraso, a obra só foi possível porque o governador em exercício do Rio, Francisco Dornelles, decretou estado de calamidade pública, para que Michel Temer pudesse liberar 2,9 mil milhões de reais, a fundo perdido.

Com o dinheiro, o governo do Estado também garantiu os serviços públicos durante os Jogos. O atraso do pagamento de funcionários fez o banco estadual suspender a colecta de sangue em Abril e o Instituto Médico Legal (IML) deixar de receber corpos, em 7 de Junho. A Polícia Civil também restringiu o uso de combustível: um terço da frota de viaturas teve o abastecimento diário cortado. No dia do anúncio da calamidade pública, 50 mil bilhetes para a Olimpíada foram postos para revenda.

Flávia recorda também episódios isolados que abalaram a imagem da cidade. O caso da queda de uma ciclovia, que matou dois homens em Abril, e da violação colectiva de uma adolescente em Maio, ambos no Rio.

Apesar de optimista, o próprio prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, admitiu ao jornal britânico The Guardian que a Olímpiada é uma "oportunidade perdida". "Com essa crise económica e política, com todos esses escândalos, este não é o melhor momento para estar nos olhos do mundo", afirmou.

Além da recessão, do processo de impeachment da presidente afastada Dilma Rousseff, que terá um desfecho no fim do mês, já depois do encerramento dos Jogos, do escândalo de corrupção da Petrobras, no qual 56 executivos, operadores, empresários e políticos já fecharam acordos de delação premiada -, o país tem de lidar com o surto do Zika, vírus relacionado com graves defeitos de nascimento, como a microcefalia, e que deixou algumas baixas na Olimpíada, mesmo com as recomendações contrárias da Organização Mundial de Saúde, a OMS (que prevê risco mínimo de infecção no Inverno brasileiro). No golfe, oito dos 20 melhores jogadores do mundo decidiram ficar longe do Brasil.

Fora isso, apesar de o Brasil nunca ter sido alvo de um ataque terrorista, com os últimos atentados em Europa, o nível de alerta foi elevado. Quarenta e quatro anos depois do ataque a elementos da delegação de Israel na Olimpíada de Munique, é real o temor de que atletas sejam alvos de um novo acto extremista. Para proteger os 10,5 mil atletas de 206 países e os cerca de 800 mil turistas aguardados, o país conta com 85 mil agentes de segurança. Há duas semanas, a polícia deteve 12 pessoas que enalteciam o Estado Islâmico e trocaram mensagens que sugeriam a preparação de ataques durante os Jogos. A notícia ampliou o desânimo da população.

Sambar ainda assim

Mesmo com uma opinião predominantemente pessimista, também há quem acredite que os Jogos serão bons para o desenvolvimento do Brasil e do Rio. É o caso do economista Juan Jensen, da 4E Consultoria e professor do Insper. "No longo prazo, de facto, existe a possibilidade de que a Olimpíada ajude a promover o Rio como destino turístico mundo afora. Se tudo ocorrer como previsto, sem incidentes de violência, podemos ter um ganho em termos de imagem", diz Jensen. Os Jogos, no entanto, serão incapazes de reverter a recessão do país: "Para a economia como um todo, o efeito é zero", acrescentou. Os 38 mil milhões de reais de investimentos ligados à Olimpíada são pouco significativos num país com um PIB de 4 biliões. De acordo com o economista Gilberto Braga, "os efeitos não devem ser medidos pelo movimento durante a competição. Se bem-sucedido, o evento vai dar exposição à marca Rio e Brasil".

Outro animado é o morador do Rio, Mário Reis, reformado. Ele vê nas Olimpíadas, que darão 306 trios de medalhas em 42 desportos até ao próximo dia 21, um motivo de orgulho para a cidade e para o país e desvaloriza os recentes constrangimentos ocorridos na Aldeia dos Atletas. Desgostosa com as más condições dos apartamentos - houve queixas de vazamentos, fios expostos, vasos entupidos -, a delegação da Austrália negou-se a ocupar os imóveis. Foi preciso chamar um batalhão de 600 trabalhadores para pôr a casa em ordem. Reis vai rever-se na apresentação conjunta de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Anitta, a principal de hoje à noite. Eles cantarão "Isso aqui o que é" ("isto aqui ô ô / é um pouquinho de Brasil iá iá), que exalta um povo alegre, criativo e que não se entrega aos problemas. Mesmo sentindo os efeitos da inflação à mesa - o preço do feijão, por exemplo, já duplicou de valor em 12 meses, a batata está 66% cara, e o alho, 65% - e a turbulência política, o carioca Reis, nos próximos 17 dias, fará como a morena da música de Ary Barroso: vai pôr a sandália de prata e vai pró samba, sambar.


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