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Catarina Vasconcelos: “Ninguém se habitua à morte de uma mãe”

A primeira longa-metragem de Catarina Vasconcelos é sobre a morte e sobre a vida, sobre a avó, sobre a mãe e sobre todas as mães. “A Metamorfose dos Pássaros” tem acumulado prémios de júri e de público. Chega às salas portuguesas a 7 de outubro
Lúcia Crespo 01 de Outubro de 2021 às 11:00

"Há árvores que viram o pai e a mãe nascerem, e que viram os pais dos nossos pais nascerem, e que viram os pais dos pais dos nossos pais nascerem..." A voz-off do filme "A Metamorfose dos Pássaros" é a voz de Catarina Vasconcelos, nesta sua primeira longa-metragem, um filme sobre a morte e sobre a vida, sobre a avó, sobre a mãe e todas as mães. Depois da estreia mundial no Festival Internacional de Cinema de Berlim e da antestreia nacional no IndieLisboa, o filme estará nas salas portuguesas no dia 7 de outubro. Ganhou mais de 20 prémios em todo o mundo e foi selecionado por mais de 60 festivais.

Está surpreendida com a forma como as pessoas estão a receber o filme?

Fico sempre comovida, não esperava estas reações, até porque o filme partiu de uma esfera muito pessoal. De repente, extrapolou o universo familiar, chegou a muitas pessoas, e isso é comovente. Infelizmente, muitas e muitos de nós já passaram ou irão passar pela morte de uma mãe ou de alguém muito próximo. O tema é banal, mas o que sentimos não é nada banal, é violento, triste, faz-nos pensar. Tenho recebido mensagens de diversos sítios. Um rapaz polaco começava a sua mensagem de uma forma um bocado críptica, dizendo que o nosso corpo é feito de moléculas e de átomos, e que tinha sentido que todos os seus átomos tinham como que vibrado ao ver o filme, que sentiu tanta coisa que decidiu ligar à mãe, com quem não falava há 25 anos. Eu não sei o que é que se faz com uma mensagem destas… A história dele acabou por não ter um desenlace feliz, como se calhar não têm a maior parte das histórias. Fomos habituados à ideia do viveram felizes para sempre, isso não existe, mas existe um processo de fazer as coisas, e nesse processo podemos ser felizes em determinados momentos.

 

Decidiu até criar um "site" para partilhar muitas das histórias que lhe enviam.

Sim, as histórias são tão bonitas que seria também bonito partilhá-las. Por exemplo, a Elisa Costa Pinto escreveu dois contos extraordinários, ancorados na sua história pessoal, na zona da serra da Estrela: ela fala da morte de uma mãe-loba e do quão impactante isso foi na sua vida. Outras pessoas escreveram sobre as avós. Há uma história também muito bonita, que fala sobre a guerra colonial e de como o filme espoletou essas memórias na pessoa que o viu. Há assim um entrançar de várias histórias e memórias que vão muito além do filme e que são muito maiores que o filme, e todo esse diálogo me deixa humildemente honrada.


O processo começou há muito tempo, com uma conversa a partir de Londres.

Os filmes são feitos também para os olhos das pessoas, estão terminados quando chegam ao olhar das pessoas. "A Metamorfose dos Pássaros" demorou cerca de seis a sete anos – nunca se sabe bem quando é que um filme começa. Um dia, estava a falar com o meu pai pelo Skype e às tantas ele diz-me: o teu avô pediu para queimarmos as cartas de correspondência entre ele e a tua avó. Lancei os meus melhores argumentos para o contrariar. Eu não conheci a minha avó Beatriz, ela morreu em 1984 e eu nasci em 1986, e estava convencidíssima de que nessas cartas conseguiria conhecer aquela mulher, que foi sempre uma espécie de ausência presente na família. Falava-se sobre ela quase sem falar e percebi ao longo dos anos que ocupava um lugar de dor. Foi uma morte muito violenta, quase de um momento para o outro, foi diferente da morte da minha mãe, a minha mãe esteve a morrer durante seis anos. Não que alguém se possa preparar para a morte de uma mãe, mas senti, em conversa com os meus tios e com o meu pai, que esta morte violenta, quase de um dia para o outro, é a violência de um dia está tudo bem e no outro dia já não está tudo bem.

 

O choque será maior.

Ninguém se habitua à morte de uma mãe, quando muito vai aceitando e vai-se formando com essa falta. A dada altura, estava a escrever uma voz-off do filme e entrei em pânico. Liguei à minha psicóloga e ela disse-me uma coisa extraordinária sobre o luto: as pessoas que sofrem a morte tão precoce de um progenitor são como uma espécie de árvore que cresce à volta de uma outra árvore; como se as crianças fossem árvores mais frágeis que se vão enredando à volta de uma árvore mais forte. Quando a árvore de dentro morre, as outras continuam a crescer, mas há um fosso por dentro. Sim, continuamos a crescer, mas há um bocado de nós que nunca é ocupado, e não é suposto ser ocupado. Passa a ser quem somos. E, também a propósito dos meus dramas em relação ao filme, a minha psicóloga falou do mito da Penélope e do Ulisses: Penélope constrói a manta e diz que se vai casar quando terminar essa manta, e à noite desfaz a manta. Era isso que eu estava a fazer com o filme, era uma forma de passar mais tempo com a minha mãe.

 

"Quando a minha mãe morreu, eu e o meu pai encontrámo-nos na ausência da palavra mãe", diz a Catarina no filme.

Se calhar só ganhei consciência disso com este filme. Comecei a fazer psicoterapia com 14 anos, a minha mãe ainda estava viva, foi claramente um processo para falar do inevitável. Mas a sensação de paridade entre mim e o meu pai na orfandade das mães foi algo que só percebi com o filme. Aliás, o primeiro guião era só sobre a Beatriz. Às tantas, a minha namorada leu esse guião e perguntou-me, então e onde é que tu estás? Mas isto não é sobre mim. Estás a gozar, se não é sobre ti, é sobre quem? Esta é a minha avó Beatriz. Mas a história da avó Beatriz é a tua história, é a história da tua mãe…! Havia uma parte de mim que não queria que fosse sobre mim, sendo que já era, e era só esquisito se não o fosse. Depois mudei o guião, mostrei-o ao meu pai e ele disse-me: há coisas que não aconteceram bem assim.

As famílias são também coleções de segredos e de mistérios.

Conseguiu "libertar-se da família e do medo de inventar" sobre ela?

Os meus tios e o meu pai foram profundamente generosos na forma como deixaram as emoções vir ao de cima. Passámos dias a falar, foi uma partilha muito intensa, mas eu tinha a sensação de que existia algo que não me estavam a contar, uma espécie de grande mistério, andei convencida de que havia um segredo na minha família. Depois percebi que não era nada específico da minha família, que há coisas que não são contadas, as famílias são também coleções de segredos e de mistérios, e se calhar em muitos destes segredos e destes mistérios vive a própria ideia de família. Então, se eu não sabia algumas coisas, podia inventar. O próprio visual do filme resulta deste encontro entre o real e aquilo que não se sabe.

 

O filme é também como uma orquestra, tal como uma família?

A minha família é uma orquestra gigante, somos muitos! Estudei música, comecei a tocar violino aos 7 anos, e sempre me agradou a ideia de tocar em orquestra: existe uma sensação de ordem sem ser preciso falar, fala-se através da música. Eu queria que o filme tivesse esta ideia sinfónica, com várias vozes, as vozes de Henrique e de Beatriz, o soprano e o tenor, a voz de Jacinto, o baixo contínuo, o coro dos meninos, e depois as cartas das mulheres no navio. Senti necessidade desta polifonia, a vários níveis. De vozes, dos membros familiares e da mistura entre realidade e ficção.

 

Além da música, também as belas-artes estão muito presentes.

Sim, eu estudei mesmo Belas-Artes e a forma como criei o filme está mais próxima desse universo, e até do universo da literatura, do que do cinema documental. Também tenho vindo a pensar na ideia de que os mortos são todos perfeitos, a minha mãe é perfeita, e é perfeita porque está morta. Nós pomos os mortos num pedestal extraordinário, e isto em si mesmo é uma ficção enorme. Tratar de mortos é sempre uma ficção, não dá para ser de outra forma.

Comovo-me muito com a capacidade incrível que a natureza tem de atravessar o tempo.

A natureza está muito presente no filme. Também é o seu Deus?

A minha avó tinha uma relação muito próxima e muito forte com a natureza. Na casa dos meus avós havia um jardim, e eles fizeram um esforço enorme para depois comprarem um terreno no Alentejo onde pudessem plantar: plantar árvores, plantar uma casa. O terreno existe, tem dezenas de árvores de fruto, e ainda hoje, quando eu como uma laranja daquelas árvores, penso sempre que foram plantadas pelas mãos da minha avó. Comovo-me muito com esta capacidade incrível que a natureza tem de atravessar o tempo.

 

"Há árvores que viram o pai e a mãe nascerem, e que viram os pais dos nossos pais nascerem, e que viram os pais dos pais dos nossos pais nascerem..."

Estas árvores viram-me nascer. A minha avó tinha uma fé católica extraordinária. Eu não a tenho, a minha mãe não a tinha, mas tinha uma fé extraordinária na natureza, isso é de alguma forma o que nos liga às três, a mim, à minha mãe e à minha avó, e essa ideia traz-me consolo. Estamos agora no outono, morre muita gente, e isso não pode deixar de estar relacionado com o momento em que as folhas caem, mas a seguir ao outono vem o inverno e depois a primavera. Se há uma ideia de Deus no filme, que seja na natureza. A natureza acaba por ocupar esse lugar.

Os próprios objetos são elementos de ligação.

A casa dos meus avós em Lisboa estava a ser vendida e nós tínhamos apenas um mês para filmar no seu interior. Eu sabia que queria registar a casa, sabia que queria ficar com a casa em imagens. No último dia, estava a olhar para os objetos e de repente fiquei muito comovida por pensar que aqueles objetos não eram só objetos, em algum momento tinham sido escolhidos pela avó Triz, tinham sido tocados por aquelas mãos, e então aqueles objetos eram muito mais do que aqueles objetos, eram uma evocação de uma pessoa, da Beatriz.

 

O filme reflete também sobre a condição da mulher. Há uma passagem muito bonita, diz assim: "A mulher é então como uma tomada elétrica, presa à parede, a quem compete apenas esperar que seja penetrada. Enquanto o homem é a ficha macho, livre, que não está preso a nada, e que pode encaixar onde lhe der mais jeito."

Os meus tios e o meu pai foram educados num período conturbado a nível político, em ditadura, com papéis rígidos em relação ao que as mulheres faziam e em relação ao que os homens faziam. A conversa mais reveladora terá sido a que tive com a minha tia Teresa, a única mulher no meio dos seis irmãos, ela falou-me não só da condição de filha e de órfã, mas também de mulher, das tarefas que tinha de aprender e os irmãos não tinham. Ainda hoje somos herdeiros de tudo isto. E a minha família até foi privilegiada, todos estudaram, a minha tia Teresa é médica. Mas a condição da mulher na altura da ditadura era realmente miserável.

Ainda hoje a mulher tem de afirmar o seu lugar.

Os livros foram também essenciais para fazer esse retrato?

Sim, eu até achava que iria perceber tudo sobre a minha família através de livros! – uma ideia completamente distópica. Mas foi fundamental ler a obra "Novas Cartas Portuguesas". É de uma atualidade gritante e isso assusta-me. Ainda hoje a mulher tem de afirmar o seu lugar, ainda hoje existem muitas coisas sobre as quais não se fala ou sobre as quais fala-se a medo. É um livro que deveríamos ter à cabeceira. Imagino a minha avó com a Bíblia e eu com as "Novas Cartas Portuguesas", ainda que ela tivesse a abertura de pensar por si, e sinto isso pelos filhos que teve.

 

Participaram em manifestações e em grupos de resistência à ditadura.

Eles receberam influências daquilo que estava a acontecer nos países francófonos e enfrentavam também a ida para a guerra. Numa família com seis irmãos, cinco deles homens, iriam todos para a guerra. Era também um conflito pessoal. Quando estávamos a gravar as vozes, o meu pai disse-me que, naquela altura, ele não tinha consciência da discussão atual sobre o colonialismo. Havia um discurso contra a guerra, mas não o discurso que hoje temos. No filme, eu junto o discurso do meu pai nos anos 1960 e o meu discurso de hoje. O Jacinto não é só o meu pai, somos os dois. Este Jacinto é a junção da Catarina e do Henrique (o verdadeiro nome de Jacinto), e da Teresa, do Nuno… Todos os filhos cabem no Jacinto. Eu não podia deixar de mostrar um bocadinho a minha visão e de quão atrasados estamos nesta discussão – acho extraordinário ter-se pensado num Museu das Descobertas, ainda não desconstruímos a ideia mítica da expansão marítima.


Diz que o cinema foi sempre um meio dominado por homens. Há cada vez mais cineastas e premiadas. Algo parece estar a mudar.

Espero que existam mais filmes feitos por mulheres, por pessoas trans, por pessoas sem género, quanto mais diverso for o cinema, mais diverso é aquilo que vemos, logo, mais diverso é o que podemos ser. Felizmente e infelizmente, o cinema tem sido a educação sentimental, sexual, de muitas e de muitos nós. Se o cinema for feito apenas por homens, o que é que estamos a dizer aos nossos olhares? Se for feito apenas por homens brancos, heterossexuais, o que estamos a dizer? Sinto que algo está a mudar, mas até haver paridade, não creio que eu vá estar viva.

 

O cinema português está finalmente a ser reconhecido?

Não me canso de dizer que o cinema português é um milagre, o John Malkovich diz que adora fazer cinema em Portugal, que é incrível como os portugueses fazem filmes sem nada.

 

Ainda assim, o reconhecimento só surge depois dos prémios internacionais?

Há ainda a ideia de que os filmes têm de ser reconhecidos lá fora para as pessoas cá dentro dizerem que então vale a pena, e isto tem que ver com a falta de política cultural em Portugal e com uma falta de interesse a vários níveis, não apenas financeiro. Acho extraordinário quando, nos Jogos Olímpicos, se pedem medalhas dos nossos atletas tendo em conta o apoio dado ao desporto – acontece o mesmo no cinema, os apoios são muito reduzidos para depois se pedirem medalhas de ouro! Mas sinto-me muito orgulhosa e agradecida por fazer parte de um cinema de resistência, de muitas mulheres e homens que trabalharam antes de mim, só faço o que faço porque muitas pessoas que vieram antes de mim têm lutado imenso pela ideia de independência e de autoria.

O que pensa sobre a atualização da lei do cinema?

Qual lei? Não há lei nenhuma do cinema português, há é uma lei em relação a multinacionais e que se dá por contente por taxar 1% à Netflix, não é por aí.

 

Qual o seu próximo projeto?

O nome é "Pintura Inacabada", sou muito pouco original, é também um filme sobre a morte, sobre a morte de uma mulher, sobre como se morre, como se pode morrer e como deveríamos ter direito a uma morte sem sofrimento. É uma das questões que de facto mais me preocupam, provavelmente devido à forma como a minha mãe morreu, com um enorme sofrimento, teve um cancro durante seis anos e morreu sufocada. Não se fala sobre estas coisas, e é preciso falar.

 

É também sobre a importância dos rituais, tão arredados pela pandemia?

É muito interessante estudar a história da morte. Durante a Idade Média, as pessoas preparavam-se para morrer, percebiam que estavam doentes, deitavam-se, havia todo um procedimento à sua volta. As outras pessoas despediam-se, uma a uma, falavam das coisas boas e más, perdoavam e eram perdoadas. Depois ficava-se à espera da morte, em casa. Hoje, quanto mais longe de casa melhor, transferiu-se tudo para os hospitais. A minha mãe morreu num hospital, o meu avô morreu num hospital, a minha avó morreu num hospital. Perdemos as rédeas da nossa própria morte. Estes são temas que me inquietam, e se os filmes contribuírem para pensarmos um bocadinho sobre tudo isto, então ganhamos todos, e ganhamos muito mais do que prémios.

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