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Ana Matos: “Precisamos de sentir os espaços com vida”

Cresceu entre as mãos da avó, Ilda Reis, e os livros do avô, José Saramago. O legado de Ana Matos é enorme, e parte dele está na Galeria das Salgadeiras, no Bairro Alto, um espaço que cruza as várias linguagens que a arte tem. Para a curadora e diretora artística, a arte é um bem público, e esse compromisso está presente na sua galeria, que reabriu com a exposição “Please be quiet, please”, de Daniela Krtsch. Segue-se “Shadows as memories”, de Carlos Alexandre Rodrigues
Lúcia Crespo 09 de Abril de 2021 às 11:00

Cresceu entre as mãos da avó, Ilda Reis, e os livros do avô, José Saramago. O legado de Ana Matos é enorme, e parte dele está na Galeria das Salgadeiras, no Bairro Alto, um espaço que cruza as várias linguagens que a arte tem. Abriu portas há 18 anos, a 4 de Julho de 2003, com uma exposição das gravuras da avó. Ana recorda os movimentos ondulantes da arte de gravar o metal ou a madeira – "a minha avó tinha umas mãos lindas". Conheceu o avô já mais crescida, sobretudo nas férias em Lanzarote, partilharam refeições e conversas – "o meu avô mostrou-me que o mundo é de facto um lugar muito grande". Para Ana, a arte é um bem público, e há qualquer coisa de missão política na sua galeria, que reabriu com a exposição "Please be quiet, please", de Daniela Krtsch. Segue-se "Shadows as memories", de Carlos Alexandre Rodrigues.

Ana Reis Saramago Matos nasceu em 1972 e viveu sempre rodeada de gente politizada – "tinha as esquerdas todas em casa". É filha de Violante Saramago Matos, dirigente estudantil presa no 1.º de Maio de 1973. "Aprendi a andar na prisão em Caxias, entre os meus 15 e 18 meses, enquanto lá estive com a minha mãe. Era a única criança em Caxias. Adoraria ter essa memória, não a tenho." Mas há relatos. "Aurora Rodrigues e muitas outras presas costumavam dizer-me, pelas paredes das celas, ‘Força nas perninhas, Ana’." Nela, a política exprime-se sobretudo através do seu espaço de arte contemporânea. Nem sempre foi assim. A diretora artística e curadora da Galeria das Salgadeiras estudou Engenharia Informática e trabalhou muito tempo em empresas tecnológicas. Há 18 anos, inaugurou a galeria com uma exposição da avó – "tinha de ser".

 

Como aconteceu o salto da engenharia informática para o mundo das galerias de arte?

Sempre gostei muito da parte da engenharia, da ideia de solucionar um problema, de sistematizar. Estudei Engenharia Informática no Instituto Superior Técnico, e foi uma excelente aprendizagem. No início dos anos 1990, aquele era um curso de vanguarda que trouxe ao país uma série de disrupções, de tal maneira que a própria Ordem dos Engenheiros tardou em aceitar-nos. Escolhi depois o ramo da inteligência artificial, e fiquei tão fascinada que até comecei a fazer um mestrado nessa área. Mas queria ganhar alguma independência e decidi ir trabalhar, com a ideia utópica de que conseguiria fazer as duas coisas ao mesmo tempo.

 

No final dos anos 1990, trabalhar na área da tecnologia seria especialmente absorvente.

Se tivesse continuado, agora poderia estar num dos unicórnios portugueses! – trabalhei muitos anos na OutSystems. Comecei na Easyphone em 1996, a seguir fui para a Intervento, comprada depois pela Altitude. Com o 11 de Setembro, a empresa falhou a entrada no Nasdaq, passou por uma reestruturação interna, e eu propus então a minha saída. Gostei muito de trabalhar na área, conseguia ter uma condição financeira bastante estável e o ambiente de trabalho era ótimo. Mas era também muito competitivo. Até 2003, trabalhei intensamente, sentia-me esgotada, comecei a pensar se era realmente aquilo o que eu queria fazer. Na altura, o Paulo Rosado, que também tinha saído da Altitude, criou a OutSystems, precisava de alguém para fazer a documentação técnica, e havia a possibilidade de trabalhar em "part-time". Encontrei ali um equilíbrio muito bom, que me deu tempo para pensar no que queria fazer dali para a frente.

Havia a ideia latente de criar um projeto próprio?

Sempre tive a ideia de ter qualquer coisa minha, trabalhar no mundo das artes era uma hipótese e uma galeria fazia-me sentido. A minha avó teve uma grande influência na minha vida, o meu pai chegou a ter uma galeria na Madeira, e eu sempre gostei de ver obras de arte nas paredes – uma obra reativa-nos a memória, dá-nos alma, conta-nos uma história, questiona-nos. Era até estranho chegar a casa de alguém e não ver quadros, ou livros. No fundo, queria que as pessoas tivessem essa vontade e essa possibilidade. Mas, quando a galeria aconteceu, não estava à espera que acontecesse naquele momento. Eu tinha um espaço alugado na Rua das Salgadeiras, conhecia alguns fotógrafos, mas não tinha artistas, não tinha programa. Tirei alguns cursos de história de arte e de estética, mas não sabia fazer uma folha de sala, não sabia fazer um preçário. E não recomendo que se faça assim, fui aprendendo com os erros, foi um caminho longo.

 

A Galeria das Salgadeiras inaugurou a 4 de julho de 2003, precisamente com uma um conjunto de gravuras de Ilda Reis, a sua avó.

Nós tínhamos uma relação muito próxima. O primeiro contacto com este mundo da cultura, e da arte contemporânea em particular, aconteceu sobretudo com a minha avó. Aos oito anos, fui viver para a Madeira e só voltei aos 18, mas vinha passar as férias com ela. Íamos para a cooperativa Gravura, passávamos lá os verões. Lembro-me bem do cheiro da tinta e das resinas. Acompanhei-a também nas exposições que fez na Fundação Calouste Gulbenkian e ia com ela à Galeria Nasoni. A proximidade com este mundo foi ficando, e acho que foi isso que me fez dar o passo de abrir a galeria. Fiz uma "preview" em junho e simbolicamente abri a 4 de julho, no Dia da Independência dos Estados Unidos, com uma exposição da minha avó…, tinha de ser.

A minha avó tinha umas mãos lindas, gesticulava imenso...

Ilda Reis era datilógrafa da CP, e aos 42 anos deixou esse emprego para se dedicar à arte…

Eu sempre a conheci como gravadora, sempre a vi com a prensa e com a sua bata branca. A minha avó tinha umas mãos lindas, gesticulava imenso... A gravura é um trabalho físico exigente. Ela fazia gravura sobretudo em metal, mas também em madeira, e na gravura em madeira tem de se escavar, usam-se umas goivas e tem de se escavar para fazer uma espécie de um baixo-relevo, que serve de matriz onde são aplicadas as tintas e as resinas, que depois gravam no papel aquilo que está na matriz. Há esse lado fisicamente duro, de estar a gravar ou a escavar uma chapa de cobre ou uma madeira. Lembro-me bastante desse movimento da minha avó, e realmente sempre a conheci assim. O resto ficou lá muito para trás... Acho que foi quando se separou do meu avô, no final dos anos 1960, que começou as primeiras experiências com gravuras, eram gravuras lindas já naquela altura. A minha avó acabou por ter uma carreira artística curta, mas manteve sempre uma linha muito autoral, muito dela. Fez um caminho um bocadinho fora do sistema, nunca teve propriamente uma galeria com a qual trabalhasse de forma regular, foi fazendo as coisas pela sua cabeça. Isso deu-lhe uma liberdade imensa, mas a dada altura teria precisado da mão de um galerista ou de um curador, que pegasse no seu trabalho e lhe abrisse algumas portas.

 

A sua avó despertou-a para o mundo das artes plásticas. E que influências recebeu do seu avô, José Saramago?

Sempre gostei muito de ler e gosto muito de escrever. Mas o meu avô apareceu mais tarde na minha vida, por circunstâncias da própria vida. Tivemos um primeiro contacto quando eu tinha 10 anos, voltámos a encontrar-nos depois quando casou com a Pilar, e começámos a ter uma maior ligação quando vim estudar para Lisboa. Na altura, o meu avô foi viver para Lanzarote, eu fiquei na casa que ele arrendava na Estrela. A minha relação com o meu avô tem essa particularidade, que acho muito especial por isso, foi muito tardia, eu não tive propriamente aquela relação paternal que associamos ao avô, de ir com ele passear para o jardim ou de andar de baloiço. Conheci-o numa fase adulta, havia uma relação de igual para igual, isso foi muito bom, tínhamos conversas como tenho com os meus amigos, era uma coisa bastante normal.

O meu avô mostrou-me que o mundo é de facto um lugar muito grande.

Não tinha a consciência da sua dimensão?

Na altura, o meu avô não era assim tão conhecido, havia um nicho que o conhecia bem, mas não era propriamente uma figura muito conhecida do público em geral. Com o Prémio Nobel, ganhou maior projeção, claro. Ainda assim, parecia-me um bocadinho uma espécie de sonho de princesa. Foi só quando fui passar férias a Lanzarote, durante dois verões seguidos, que consegui realmente perceber o mundo que ele tinha. Houve uma aproximação entre nós, tínhamos muitas conversas à mesa do pequeno-almoço e do almoço, e comecei a perceber todo aquele compromisso político e social, foi algo muito intenso. Ele mostrou-me que o mundo é de facto um lugar muito grande, que há muitas culturas, muitas perspetivas e muitas sensibilidades. Mostrou-me essa pluralidade de culturas e de emoções. Acho que foi realmente com ele que aprendi isso, a entender o outro.

 

Conheceu a pessoa além dos livros.

Sim, conheci a pessoa além dos livros e encontrei-a depois também nos livros. Foi uma descoberta tardia, mas muito intensa, ficou-me. Fui percebendo isso, até na relação com a galeria. Demorei muito tempo até conseguir definir a Galeria das Salgadeiras, foi-se revelando. Em 2014, quando mudámos para o novo espaço, na Rua da Atalaia, convidei alguns artistas para fazerem uma interpretação da "Mensagem", de Fernando Pessoa. Organizámos a coletiva "Grifo", a exposição número 100. Percebi na altura que, ao longo do meu trabalho, havia muitas referências da literatura. Tomei consciência do cruzamento com áreas como a poesia, a filosofia, e até com questões mais políticas. Começou a vislumbrar-se o programa da galeria, o caminho foi-se afinando, e está agora bastante claro: a contaminação positiva entre as várias áreas do pensamento, trazendo essas influências para o território da arte contemporânea. Sempre me interessou olhar para uma obra e pensar: é fotografia, é pintura, é instalação, é escultura? Para mim, elas misturam-se.

Cresceu no meio de pessoas politicamente muito ativas. A galeria é também uma missão política?

Como a minha mãe costuma dizer, eu aprendi a andar na prisão em Caxias, entre os 15 e os 18 meses, enquanto lá estive com ela. Era a única criança em Caxias. Apesar de não me lembrar, é algo que me fica para a vida. Se me dessem uma varinha de condão, adoraria voltar a essa altura e ter essa memória, não a tenho. Mas há relatos narrados à jornalista Ana Aranha pela Aurora Rodrigues, que também fazia parte do MRPP. Ela e muitas outras presas costumavam dizer-me, pelas paredes das celas, "Força nas perninhas, Ana". Acho isto muito comovente. Não tenho essa memória, mas tenho memória dos meus pais como pessoas muito comprometidas politicamente. Depois foram para a Madeira e durante alguns anos tiveram uma vida normal, o meu pai na câmara municipal, a minha mãe como professora. Mas o bichinho da política perdura, sobretudo na minha mãe, o bichinho convocou-a várias vezes. O ativismo político é transversal à minha família. O meu tio Arnaldo (Matos) fundou o MRPP... Eu tinha as esquerdas todas em casa, e durante algum tempo houve alguns problemas de semântica…, alguns conflitos, reflexo também daquilo que se estava a viver. Mas esse lado de compromisso é completamente transversal à minha personalidade.

 

De que forma é que esse compromisso está presente na galeria?

A arte é um bem público e tem de estar acessível às pessoas. Retirar a eventual carga elitista de galeria foi sempre uma motivação. Claro que uma galeria não deixa de ser um espaço comercial, essa vertente tem de estar presente, é muitas vezes difícil mantê-la, mas tem de lá estar, é isso que faz com que os artistas continuem a trabalhar. Acho que o tecido galerístico em Lisboa é hoje bastante eclético e criaram-se hábitos de cultura que não existiam. Miguel Wandschneider (que foi curador da Culturgest) dizia: a programação da Culturgest pode ser elitista, mas a atitude não tem de o ser. Há galerias com uma programação mais conceptual, de certa forma mais difícil. As pessoas podem achar que não compreendem algumas obras, esse sentimento ainda existe em relação à arte contemporânea. E essa desconstrução implica um trabalho acrescido por parte dos galeristas, curadores e agentes culturais, que devem dar ferramentas às pessoas para que possam criar uma relação mais próxima com a obra de arte. A minha associação, Isto não é um cachimbo, organizou durante dez anos o Bairro das Artes, na sétima colina de Lisboa. Era uma espécie de noite branca: galerias, museus e espaços de arte estavam de portas abertas, com inaugurações, lançamento de livros e conferências. Era maravilhoso ver as ruas cheias de gente, de programa na mão… Este tipo de estratégias leva as pessoas a aproximarem-se da arte e, à medida que se vão aproximando, começam a gostar, criam sentido crítico e acabam até por ir adquirindo.

O online não permite essa vivência.

O online tem algumas vantagens, como a partilha de conversas com artistas, mas não permite a experiência, e a experiência de estar num espaço de arte pode mudar a nossa vida. Tento que as pessoas que aqui vêm sintam esse conforto, a arte tem de convocar as pessoas, tem de fazer com que se sintam parte daquilo que está a acontecer. Tentamos sempre gerar essa ligação. Criámos, por exemplo, o Grupo Amigo das Salgadeiras, que é uma espécie de clube: ao aderirem, as pessoas recebem uma obra exclusiva do grupo, podem visitar as exposições antes da inauguração e acedem a descontos. Isto tudo mediante o pagamento de uma quota de 25 ou 50 euros, que reverte totalmente para a aquisição de uma de obra arte. É um "plano-poupança arte". Conseguimos assim uma maior fidelização e estamos menos permeáveis às flutuações do mercado, uma estabilidade muito importante nos dias que correm.

 

As galerias estavam muito dependentes das feiras, agora sucessivamente adiadas.

A feiras de arte ainda são o grande sustento das galerias contemporâneas, são excelentes suportes de vitalidade. Falta-nos esse momento de exposição aos colecionadores domésticos, institucionais e estrangeiros, esse contacto está a perder-se, o que agrava a viabilidade financeira das galerias e dos artistas. O modelo das feiras online não funciona para as pequenas e médias galerias, que estão a apresentar artistas novos ou emergentes. Falta a relação que um galerista estabelece com os colecionadores e com os artistas, que é uma relação de confiança. Ouvi uma vez um galerista dizer uma frase curiosa, ele encarava o galerista como um curador de artistas, eu revejo-me muito nessa definição.

 

Como definiria o momento que vivemos?

A palavra é "sobreviver". Ainda assim, a situação que vivemos trouxe alguns aspetos positivos. Um deles tem que ver com a valorização de áreas como a saúde, a ciência e também a cultura. As pessoas estão mais sensíveis e começaram realmente a perceber as especificidades do chamado profissional da cultura, que vive uma vida muito difícil, muito intermitente e muito permeável. Esse reconhecimento tardou, mas vai ficar. Dito isto, 2021 vai ser um ano mais difícil para as galerias do que 2020, e é o momento de chamar o Estado à sua responsabilidade de preservar e de ser um suporte, também para a arte contemporânea. É o momento de chamar os colecionadores institucionais, porque o momento é de exceção e todos sentimos a importância de ter livros, todos sentimos a importância de ir ao teatro e de visitar as galerias. Há uma consciência da importância da arte nas nossas vidas, temos todos de ser consequentes com isso. Espero também que as pessoas visitem museus, vão a uma galeria, vão ver – precisamos mesmo de sentir os espaços com vida.

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