Um jogo do século X, um batom, um saco de algodão bordado ou uma máquina de escrever não têm muito em comum. No entanto, através deles é possível chegar a histórias de escravatura, emancipação feminina e também de poder e guerra. "Os objetos são como testemunhas silenciosas: estavam lá, viram tudo, ouviram tudo, mas nunca ninguém lhes fez perguntas", diz Annabelle Hirsch, jornalista e autora de "Uma História das Mulheres em 101 Objetos", que agora chega às livrarias. Os objetos, autênticas lâmpadas de Aladino "de onde sai tudo quando a esfregamos", traçam o relato de um tempo que vai da pré-história a 2022, tendo as mulheres como protagonistas.
"Quando tentamos escrever a história feminina, tendemos a contar a história das mulheres fixes e poderosas – na verdade, das mulheres que foram como homens. Eu não queria nem a história das vítimas nem dos vencedores", explica a autora, para quem o importante era ficar o mais próximo possível da sua complexidade e nuances que fazem parte da realidade.
Ao longo de ano e meio, Annabelle pesquisou e escolheu os objetos que compõem esta história. O processo de seleção foi mudando: se no início procurava objetos para histórias que sabia que queria contar – como a do amor cortês, na Idade Média –, depois foram os objetos que chegaram até ela.
Foi o caso do alfinete de chapéu de finais do século XIX. Numa altura em que as mulheres conquistavam o espaço público, o alfinete – que chegava a ter oito centímetros – assumia a dupla função de manter os chapéus no lugar e servir como arma de autodefesa. Várias notícias da época relatam de forma entusiasta como as mulheres americanas faziam face ao assédio masculino. Mas a partir do momento em que o tema passou a ser abordado pelas sufragistas, surgiram regras para proteger os homens do "perigo" dos alfinetes. "Gostei da história pelo muito que conta sobre as mulheres e o espaço público e também achei curioso – e ao mesmo tempo trágico – que no século XIX tivéssemos as mesmas discussões que temos hoje sobre a segurança das mulheres no espaço público", diz Annabelle Hirsch.
Este não é o único caso em que um objeto começa como instrumento de libertação para depois ganhar outro significado. Em 1874, a máquina de escrever Remington trouxe às mulheres novas oportunidades de emprego e de independência económica. Os homens não queriam escrever à máquina, as meninas da sociedade sabiam tocar piano – o que lhes garantia alguma destreza manual – e em pouco tempo a datilografia era algo sobretudo feminino. Ao ponto de, décadas mais tarde, limitar outras possibilidades de carreira. "Avisavam-se as raparigas para não dizerem que sabiam datilografar. As mulheres até poderiam ser extremamente boas noutras coisas, mas se soubessem datilografar seriam a datilógrafa".
Também o batom, que a partir de meados do século XX se assumiu como imagem de uma certa ideia de feminilidade, começou como símbolo de rebeldia. As sufragistas que marcharam por Manhattan em maio de 1912, fizeram-no com os lábios pintados de vermelho – algo que até então só prostitutas, ou mulheres que não se importassem de ser associadas com elas, faziam. "Era algo que ia sublinhar a boca, numa forma de dizer ‘não nos interessa o que vocês pensam, não vamos ficar caladas’", conta Annabelle Hirsch, para quem este é um objeto cujo significado sofre mudanças cíclicas. "Nos anos de 1990, o batom era associado a esta imagem feminina consensual e isso hoje está outra vez a mudar".
Redescobrir a Idade Média
O trabalho de pesquisa trouxe outras surpresas, como a redescoberta da Idade Média. "Era um período sobre o qual não sabia nada e que agora acho fascinante. As mulheres estavam no espaço público, participavam na vida, eram superativas", ao contrário da imagem enraizada. Numa época anterior, Annabelle elege o "Jogo de Hnefatafl", encontrado na sepultura viking "Bj.581", que até 2017 se supunha conter os restos mortais de um guerreiro. "Gosto do ‘twist’ na história: que durante tanto tempo estivessem convencidos de que era um homem e se tenha provado que era uma mulher guerreira. E que os investigadores tenham ficado tão chateados que puseram a hipótese de mudar a forma de leitura daquele túmulo", conta, divertida.
Em 2017, foi levantada a possibilidade de que os objetos colocados ao lado do corpo não estivessem relacionados com a posição e profissão do defunto. "Predispunham-se a mudar toda uma maneira de pensar. Não quer dizer que todas as mulheres viking tenham sido guerreiras, significa que algumas o foram, ou talvez que os papéis de género estavam muito menos definidos e que eram muito mais flexíveis", afirma a autora.