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Cargo: Diretor para Biodiversidade, Direção Geral do Ambiente, Comissão Europeia (desde 2015); Diretor para a Adaptação e Tecnologias de Baixo Carbono na direção-geral da Ação Climática (2012-15); Secretário de Estado do Ambiente (2005-11); Assessor do primeiro-ministro António Guterres (1995-2002)
Formação: Doutorado em Biologia Evolutiva, Universidade de Lisboa
Os Estados-membros da União Europeia vão ter de cumprir metas até 2030 em matéria de espécies e habitats e registar uma tendência positiva em indicadores como vegetação nas cidades ou polinizadores. É a Lei do Restauro da Natureza que o Parlamento Europeu deverá aprovar em fevereiro e que o diretor para a Biodiversidade da Comissão Europeia considera que ajuda a economia, a produção pesqueira, florestal e agrícola. Convidado das "Conversas com CEO", integradas na iniciativa Negócios Sustentabilidade 20|30 e que pode ser ouvida na íntegra em podcast, Humberto Delgado Rosa identifica as potenciais origens de financiamento, por via dos fundos europeus, para a aplicação desta lei, mas também as oportunidades de negócio. A avançar estão "os chamados certificados de biodiversidade ou, numa fase posterior, créditos de biodiversidade" que permitem perspetivar a criação de um mercado onde se transaciona natureza, biodiversidade.
Qual foi o seu maior desafio?
Provavelmente as negociações climáticas de 2007, quando Portugal estava na presidência do Conselho da União Europeia. Era secretário de Estado do Ambiente e havia a Cimeira do Clima. Acho que acabei por ter um papel relevante como ‘lead negociator’. Num contexto muito difícil, conseguiu-se o Mapa do Roteiro de Bali em que a presidência portuguesa da União Europeia se saiu bem.
E que balanço faz quando olha para Portugal?
Na política de ambiente há ciclos de desenvolvimento seguidos de contraciclos. Chega a haver recuos. Na crise financeira ninguém tinha como prioridade o ambiente. Há um número que me impressionou no filme do David Attenborough ‘A Life on Our Planet’: desde 1960 até hoje, 50% da natureza do mundo foi destruída. Nasci em 1960 e fico quase com uma sensação de fracasso geracional. O estado ambiental do planeta é mau. Há pequenos passos aqui e ali, mas a mudança sistémica... O caso português tem alguns aspetos reconhecidos de grande avanço, como as renováveis. Também sofremos um declínio de biodiversidade e há muito para fazer no campo das emissões dos transportes... Portugal tem alguns aspetos de que se pode orgulhar e outros tantos, como qualquer país, onde ainda há muito por fazer.
Há algum país que seja uma referência nesta área do clima e da biodiversidade?
O líder internacional nestas matérias é a União Europeia. Há muitas décadas que temos políticas em geral mais avançadas do que outros grupos, porque a UE tem uma opinião pública consideravelmente favorável a estes avanços e aprendeu que há um autointeresse em liderar a sustentabilidade. Os pioneiros podem ter a vantagem daquele que se mexeu primeiro. Vejo esse papel de liderança, pelo exemplo, como significativo.
Mas essa liderança pode aumentar os custos e reduzir a competitividade europeia?
Esse sentimento de uma exigência que existirá na UE e não noutros sítios, compreendem-se. Tem um lado verdadeiro, mas não é só. Por vezes existe a visão de que a regulamentação é um obstáculo ao desenvolvimento económico, à inovação. Disputo essa visão porque uma regulação bem feita mostra que é aqui que as empresas devem apostar, porque o caminho do desenvolvimento social e económico vai por aqui. E a regulação estimula a inovação, porque quando, por exemplo, se restringe um produto, rapidamente os inovadores com uma alternativa têm uma vantagem competitiva. E se, com o tempo, medidas pelo menos similares chegam de outros grandes blocos, isso compensa. E nós, na UE, temos fama de ser bons reguladores, temos uma máquina bem montada, e em geral, sabemos o que fazemos. Por outro lado, ainda somos um mercado significativo e os exportadores gostam de ter um produto que entre bem na União Europeia.
As conclusões da COP28 surpreenderam-no?
Espera-se das COP mais do que pode dar, que seja uma revolução. Isso é inatingível num sistema de multilateralismo por consenso entre quase 200. Agora, quando olhamos para o que saiu desta COP, encontramos muitos elementos positivos. Está lá uma referência explícita à descontinuação a prazo dos combustíveis fósseis. As COP são um processo incremental. O que se pode é discutir se não precisamos de algo mais de fundo e transformativo.
E o que pensa?
Penso que precisamos. O Pacto Ecológico iniciou um processo nesse sentido. O ser humano não reage só a factos, reage muito a emoções. E as emoções aliam-se aos factos. As pessoas começam a perceber que algo vai muito mal e querem ação. E há impactos não climáticos que também notam. Ninguém gosta do plástico no oceano. Ou da perda considerável de insetos e polinizadores mundo fora, quando uma boa proporção das nossas colheitas depende desses animaizinhos.
E quando entrará em vigor a Lei do Restauro da Natureza?
Há um pré-acordo entre o Conselho e o Parlamento. Provavelmente a lei será aprovada pelo Parlamento em fevereiro. Assim que for publicada, os Estados-membros têm dois anos para apresentar os seus planos nacionais de restauro da natureza.
Esta lei teve a oposição do PPE por causa dos agricultores. Os agricultores podem ter de reduzir a sua produção?
Não vejo porque é que têm de reduzir a sua produção.
Não foram essas as críticas fundamentais?
Foram, mas são críticas erradas. Estão baseadas na visão de que ou há mais natureza ou há mais economia. Não veem a economia humana inserida na biosfera. Uma Lei de Restauro da Natureza ajuda a economia, a produção pesqueira, florestal e agrícola. Claro que quem tivesse uma visão extrativista, de produzir o máximo possível, independentemente das condições de sustentabilidade, pode não gostar de certos critérios de restauro. A Lei do Restauro da Natureza propõe apenas que exista uma tendência positiva a nível nacional num conjunto de 3 ou 4 indicadores. São os Estados-membros que decidem os indicadores, dentro dos que podem escolher, e onde é que vão querer ter medidas. Não há nenhuma atividade agrícola a priori que esteja predefinido que tem de restringir seja o que for.
Em Portugal, temos a controvérsia com o olival intensivo. Esta lei vai ter impacto aí?
A lei vai ter impacto. O que não está predefinido é se é sobre o olival intensivo ou não. Portugal terá de decidir que medidas aplica para que um dos indicadores, que é precisamente aves rurais, aumente a nível nacional. Nalguns sítios vai ser com certeza necessário retocar algumas coisas para atingir um incremento nestes objetivos. Mas a Política Agrícola Comum contém muita matéria que é puramente restauro da natureza. E todos concordamos, agricultores à cabeça, que uma transição para a agricultura sustentável é fundamental.
Há um conjunto de objetivos de restauro da natureza até 2030 para borboletas, abelhas, aves, entre outros?
Na lei há dois grandes setores. O primeiro é dentro de espécies e habitats, já hoje protegidos, com obrigação de restauro, nas diretivas Aves e Habitats. A novidade é que se quantifica uma meta até 2030. Para o resto, cidades, polinizadores, flores, rios, terras agrícolas, terras florestais, essencialmente o que se propõe é uma tendência positiva em certos indicadores. Estou a simplificar.
Quer dar um exemplo nas cidades?
É nas cidades onde um pouco mais de natureza mais beneficia os cidadãos. Há objetivos que os Estados-membros têm de alcançar a nível nacional, como cobertura de vegetação ou infraestrutura verde em edifícios, em coberturas, em parques. O total de arvoredo terá de aumentar em cada cidade, dentro de limites a definir pelos Estados-membros. Há muita liberdade para os Estados-membros, mas as metas têm de ser cumpridas.
E como vai ser financiado? No fundo, quem paga?
Bem, pagamos todos como sociedade de alguma maneira. Mas a Comissão Europeia, depois da lei aprovada, tem um ano para identificar oportunidades nos fundos europeus. As verbas de desenvolvimento regional da Política Agrícola Comum, do fundo de pescas, do programa Life, do Horizonte, já financiam o restauro e podem fazer muito mais. Tudo depende das decisões dos Estados-membros. Mas não podemos pensar que isto só lá vai com fundos europeus ou até nacionais.
Há oportunidades de negócio para as empresas?
O mais promissor, inspirado na Cimeira anual Negócios e Biodiversidade, é a quantidade de empresas que levam muito a sério os riscos, impactos, dependências e também oportunidades. Ter em conta o clima e as emissões, mas também a nova orientação de muitas empresas de uma economia positiva para a natureza e regenerativa, liga perfeitamente com o restauro. E há oportunidades de investir nas chamadas soluções baseadas na natureza.
E estão a nascer instrumentos para a compensação?
Estão a avançar os chamados certificados de biodiversidade ou, numa fase posterior, créditos de biodiversidade. É mais difícil do que dar um valor económico ao carbono, que é mais mensurável do que a biodiversidade. Mas a ciência está a avançar depressa em métodos que nos permitem almejar uma certificação sólida de biodiversidade. Se houver essa certificação com garantias de que não há ‘greenwahsing’, como houve muitas vezes no carbono, podemos passar à segunda fase, que são os créditos de biodiversidade. Que é dizer: a minha atividade gerou mais biodiversidade que vale X e, por um mecanismo financeiro a definir, posso colocá-la no mercado, sendo compensado. Uma parcela disto é o ‘offsetting’: vou destruir a natureza com o meu projeto, ponho dinheiro algures e esse algures gera-me biodiversidade equivalente noutro sítio. Esta é a parte mais complexa.
Este modelo pode ser uma promessa para as regiões mais desfavorecidas da Europa?
Pode até ser para todas [as regiões]. Há certos serviços, como a purificação do ar pelas árvores, que não é fácil dar um valor monetário e pôr um fluxo privado a financiá-lo. Mas, por exemplo, uma companhia de águas pode ter vantagem em financiar floresta para abastecer a albufeira com água que já vem limpa. Há um valor económico que pode ser ‘mercantizável’. A oportunidade de negócio está nesta faixa. Já os serviços públicos que os ecossistemas prestam a todos têm de ser com verbas públicas. É por isso que temos os fundos europeus e nacionais.
Vamos ter créditos de biodiversidade como os de carbono, um mercado de biodiversidade?
Vejo isso como provável. Não posso garanti-lo, mas há uma série de entidades a olhar para o assunto. Os governos de França e do Reino Unido anunciaram uma iniciativa nesse sentido. Há muitas empresas a olhar para essa matéria e nós, na Comissão Europeia, vamos também refletir sobre o que pode ser necessário e útil considerar.
Os conflitos atuais podem retirar financiamento ao ambiente?
Quando temos de nos defender ou produzir armamento isso é uma prioridade de curto prazo. Mas de modo nenhum diz que ‘podemos esquecer o Pacto Ecológico porque há uma guerra.’ Essa visão é completamente errada. Os canhões podem ser necessários – e é compreensível a defesa e segurança tenham mais atenção nos próximos fundos europeus –, mas não à custa de pôr de parte financiamentos para o ambiente. Porque, se fizéssemos isso, os impactos seriam ainda maiores e piores.