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Dados divulgados pelo Fórum Económico Mundial indicam que, em 2019, mais de 92 mil milhões de toneladas de materiais foram extraídos e processados, contribuindo para cerca de metade das emissões globais de CO2, o provocador do aquecimento global do planeta. Porém, nesse ano, apenas 8,6% da economia geradora de resíduos era circular. Significa que mais de 90% da produção gerou desperdícios que se acumularam no planeta, já completamente assoberbado pelo desaguar unilateral do sistema linear.
A economia circular surge como uma solução incontornável para ajudar a aliviar o impacto das alterações climáticas, na medida em que assenta nos princípios da reciclagem e reutilização dos materiais. E este é um compromisso que convoca toda a sociedade.
O tema foi debatido na talk "Economia Circular: reinventar os modelos de negócio", organizada pelo Jornal de Negócios a 16 de setembro, naquele que é o segundo ciclo de talks da publicação sobre sustentabilidade. O painel contou com a participação de Helena Pereira, presidente da Fundação Ciência e Tecnologia; Fernando Ventura, diretor de Projetos de Eficiência e Inovação Ambiental da Jerónimo Martins; Natan Jacquemin, fundador da NÃM; e Paulo Lemos, membro da Direção-Geral do Ambiente da União Europeia e ex-secretário de Estado do Ambiente. A moderação esteve a cargo de Diana Ramos, diretora do Jornal de Negócios.
O caminho de transição para uma economia circular está ainda muito no início e todos os setores têm de se adaptar, com alguns a terem uma pegada mais pesada do que outros, segundo o Plano de Economia Circular da UE, como é o caso dos geradores de plásticos, têxteis e eletrónica, assim como das áreas da construção e alimentação, em que neste caso se sabe que 1/3 de tudo o que é produzido é desperdiçado.
"Não podemos extrair mais recursos do que o que o planeta nos pode dar anualmente. À conta disto estamos a contrair um empréstimo às gerações futuras. E está provado que através da economia circular conseguiremos atingir o duplo objetivo de reduzir as emissões de CO2 e o consumo de recursos. O último relatório do Circularity Gap prevê que se houver uma transição para a economia circular conseguiremos reduzir 39% das emissões de CO2 e reduzir em 28% a procura de novos materiais", assinalou Paulo Lemos.
À procura de produtos sustentáveis
A temática é urgente e atrai cada vez mais a atenção. Uma das forças impulsionadoras da mudança é a opinião pública. Os consumidores estão a pressionar as empresas e os decisores políticos a apresentarem soluções que ajudem a reverter o mal causado ao planeta. Querem, por exemplo, saber cada vez mais de onde vêm os produtos que consomem, para tomarem decisões conscientes com as suas convicções. Na qualidade de representante de uma cadeia de supermercados, Fernando Ventura dá conta de que, hoje em dia, "os consumidores querem saber não só de onde os produtos vêm, mas já querem informação mais granular. Querem saber informação sobre a embalagem. Já não chega ter informação só sobre o produto. Querem saber se os produtos têm selos ou certificados de sustentabilidade e o que eles significam; se têm desempenhos ambientalmente mais adequados. O consumidor procura crescentemente toda esta informação."
Da Comissão Europeia emana variada legislação para encaminhar os Estados-membros, empresas e consumidores no sentido da sustentabilidade e que visa, em última análise, a neutralidade carbónica em 2050. Em preparação atualmente, para travar o modelo atual de consumir novo, está a Iniciativa Sustentável do Produto, que deverá ser apresentada até ao final do ano, para entrar depois em consulta pública e posteriormente em vigor. "A aposta desta iniciativa não é só na promoção da reciclagem. Pretende-se aumentar a incorporação de materiais reciclados, mas queremos focar-nos na durabilidade dos produtos, porque quanto mais tempo um produto estiver na economia menos consumo de materiais e emissões de CO2 é gerado", desvenda o membro da Direção-Geral do Ambiente da UE.
Esta iniciativa pretende que os produtos com elevado desempenho ambiental se tornem a regra e não a exceção. Neste sentido, visa criar um mercado com produtos mais duradouros, reutilizáveis, reparáveis, recicláveis e energeticamente eficientes. "A ideia é promover a durabilidade através da reparação. Os produtores terão de ter peças sobresselentes a custos razoáveis. E promover o reuso, o mercado de segunda mão." Para isso vai ser criado um Passaporte do Produto, com todas as suas características, para o consumidor saber o que tem em mãos. "Se tudo correr bem, para o ano devemos ter uma proposta do que deve ser o Passaporte do Produto. Depois teremos um período de transição para as empresas se adaptarem, porque isto envolve duas dimensões importantes de transição: a transição verde e a digitalização", explica Paulo Lemos.
Neste debate foi também dado a conhecer soluções do mercado para responder à procura de produtos sustentáveis. O NÃM é um projeto empresarial cujo lema é "From waste do taste", precisamente porque consegue dar um novo uso a um desperdício: "O NÃM é um projeto de economia circular de uma quinta urbana que transforma borras de café em cogumelos e em fertilizante orgânico. Estamos a reaproveitar três toneladas de borras de café por mês e a produzir uma tonelada de cogumelos-ostra por mês. Porém, depois de produzirmos os cogumelos, ainda temos desperdício. Mas este desperdício é muito rico em nutrientes que podemos aproveitar para fertilizante orgânico, que vamos distribuir em hortas urbanas e comunitárias de Lisboa. Assim, vamos das borras aos cogumelos e ao fertilizante e não temos desperdício", explica Natan Jacquemin.
Do lado da Jerónimo Martins chega-nos o exemplo do combate ao desperdício através do aproveitamento da fruta e legumes fora do padrão, em sopas, saladas ou embalagens de fruta pré-preparadas.
I&D de novas soluções
Perante um novo desafio, uma parte importante da batalha para o enfrentar cabe à área da investigação e desenvolvimento de novas soluções. Tudo começa com a geração de conhecimento para encontrar novos caminhos para a circularidade. "Na economia circular, há várias fases do produto a considerar. Nós podemos conhecer e intervir mais nestas diferentes fases: na produção, na utilização, no consumo e, já na fase final, saber o que fazer depois de utilizar o produto", explica Helena Pereira. A investigadora acrescenta que "tudo isto precisa de investigação. Precisamos de conhecer novos materiais - para embalagens, por exemplo -, novos sensores que permitam acompanhar os produtos, precisamos de ter sistemas de produção mais eficientes, com menos consumo de energia e recursos. Portanto, temos intervenção a vários níveis".
Porém, para se chegar a uma economia circular, é preciso que o conhecimento gerado seja implementado. Helena Pereira reforça que "nós só conseguimos transformar os resultados da investigação em riqueza se houver um tecido empresarial que aplique, valorize e desenvolva o conhecimento. Eu penso que a situação portuguesa evoluiu muito favoravelmente do lado empresarial, na perceção de que é preciso ter novas ideias e introduzir inovação para ter sucesso no mercado global."