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Hidrogénio verde: uma ajuda preciosa na descarbonização?

Emissões zero. Esse é o objetivo da Comissão Europeia. Mas nem todos os setores conseguirão eletrificar-se. Se na mobilidade individual já há soluções com provas dadas no transporte de mercadorias de longa distância, em indústrias como a cerâmica ou o cimento, isso torna-se mais difícil. O hidrogénio verde poderá ser a solução, mas ainda há muitos desafios a ultrapassar.

11 de Janeiro de 2023 às 14:00
Eletrolisador para a produção de hidrogénio verde fabricado pela Fusion Fuel.
Eletrolisador para a produção de hidrogénio verde fabricado pela Fusion Fuel. Pedro Catarino
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A União Europeia está muito firme na sua decisão de descarbonizar a Europa. A decisão de proibição de venda de viaturas a combustão a partir de 2035 é ilustrativa dessa firmeza. E acarretou alterações profundas no setor automóvel. No caso das viaturas ligeiras há já no mercado soluções elétricas disponíveis. É certo que há ainda muito a melhorar, desde logo a capacidade das baterias e a ampliação da rede europeia de postos de carregamento. Mas e o resto? Há várias profissões que não podem fazer depender o seu trabalho de ter de esperar que a viatura carregue antes de prosseguir viagem. É o caso dos comerciais, por exemplo. Mas, em pior situação está todo o setor dos transportes de mercadorias. As soluções existentes de viaturas elétricas não permitem sequer pensar na sua utilização - pelo menos para já - como alternativa aos motores de combustão. A solução, para muitos, poderá estar no hidrogénio verde.

Mas é uma solução viável? Sobre isso a APREN refere que o reconhecimento da cadeia de valor do hidrogénio verde tem sido acentuado na última década, e já não existem dúvidas de que terá um papel preponderante no mix energético. A associação afirma mesmo que a tecnologia será essencial para garantir a descarbonização dos setores "hard-to-abate", em que o consumo é energeticamente intensivo, e não é viável a transição através da eletrificação direta por energias renováveis (especialmente os transportes aéreos e marítimos, e alguma produção industrial).

Maria Santos da Associação Zero, por seu lado, considera que o hidrogénio tem o potencial muito interessante, sobretudo na utilização dos setores onde a eletrificação não é possível (ou é muito difícil), como é o caso da aviação e do transporte marítimo. "O hidrogénio pode ser utilizado para produzir combustíveis sintéticos", aponta a ambientalista, acrescentando que, no caso do setor naval, se está a estudar uma alternativa ao combustível atual, que é muito poluente e tem efeitos muito nefastos. Sem contar que "baterias em grandes navios de transporte é algo quase impensável, dado que não há capacidade para suportar isso".

Os carros elétricos são tecnologias já maturadas e com infraestrutura desenvolvida, ao passo que a infraestrutura de abastecimento a viaturas de hidrogénio na Europa ainda é inexistente. Maria Santos
Associação Zero 
Já na situação da mobilidade individual, Maria Santos considera que o recurso ao hidrogénio verde é algo que não faz sentido, dado que as viaturas são pouco eficientes, principalmente quando comparadas com as soluções existentes atualmente. "Os carros elétricos são tecnologias já maturadas e com infraestrutura desenvolvida, ao passo que a infraestrutura de abastecimento a viaturas de hidrogénio na Europa ainda é inexistente", aponta, pelo que, para tornar essa possibilidade viável seria necessário equacionar essa estrutura e considerar todos os custos associados. Algo que para a Zero não faz sentido. "O custo-benefício não justificaria este tipo de investimentos", conclui Maria Santos, especialmente "tendo em conta que já existem soluções alternativas". No entanto, acrescenta a ambientalista, no transporte de mercadorias de longa distância "já poderá haver um ponto de entrada do hidrogénio". Isto porque o recurso a baterias tem "uma viabilidade questionável pelo próprio peso e dimensão da bateria e a sua própria autonomia". É aqui que a associação considera que o hidrogénio poderá fazer a diferença. No entanto alerta que "acresce o desafio de planear a infraestrutura de abastecimento". Uma alternativa poderá haver: "Postos de abastecimento nos próprios polos industriais em que já há a produção de hidrogénio."

Desafios à massificação

Os vários projetos-pilotos que estão a ocorrer nos vários setores estão a dar resposta a muitas das dúvidas que ainda existiam quanto à utilização do hidrogénio verde, as suas possibilidades e potencialidades. Então o que está a dificultar a sua implementação e massificação? Sobre isso a APREN é taxativa: a demora na publicação da legislação e regulação por parte da Comissão Europeia é preocupante e atrasa a sua expansão para a grande escala, nomeadamente porque impacta as decisões de investimento e o desenvolvimento de projetos fora do âmbito de programas de apoio.

A associação aponta mesmo que a falta de legislação e regulação gera incertezas no mercado e cria risco para o investimento. "É, por isso, necessário construir regras e um modelo de funcionamento que permita estabelecer confiança e traçar um caminho a longo prazo", acrescenta, referindo que é essencial a estabilidade.

"Apesar de existirem incentivos a nível europeu, o investimento inicial é bastante elevado, tanto para os eletrolisadores e infraestruturas, como para a geração de eletricidade renovável para suportar a produção de hidrogénio verde, já que requer o desenvolvimento de novos projetos para não criar desequilíbrios com o processo de eletrificação direta". Por outro lado, convém não esquecer que "para se gerarem economias de escalas são necessários mecanismos de estabilidade remuneratória que transmitam confiança aos investidores". Os dados mostram que as tecnologias de hidrogénio verde, à semelhança das renováveis, exigem altos investimentos iniciais, mas têm baixos custos operacionais. É por isso que a APREN considera que é essencial minimizar o custo financeiro por meio de receitas previsíveis, "principalmente em cenários, como o atual, com crise no mercado da energia na Europa. Um quadro regulatório previsível e regras de desenho do mercado são críticas para desbloquear investimentos no curto prazo".

Já Maria Santos aponta que "neste momento ainda não temos produção em grande escala de hidrogénio verde". Uma das causas prende-se com a maturação da tecnologia, tanto da parte da produção como das utilizações finais. Se na produção "precisamos de eletrolisadores para produzir o hidrogénio", sendo que, atualmente, "o máximo de capacidade ou potência que este equipamento tem é de um megawatt". Sendo que há projetos, lembra a ambientalista, que assumiram potências mais elevadas, na ordem dos 10 ou 20 megawatts". Acontece que, hoje, "não temos tecnologia para dar resposta". Mesmo nos próprios eletrolisadores de um megawatt "os fabricantes não conseguem dar resposta à procura". A tecnologia está a evoluir "e não vai conseguir dar resposta a curto prazo", afirma convicta Maria Santos.

Já no que concerne à utilização final, os "tais processos industriais - por exemplo a indústria da cerâmica e do cimento - que precisam de processos térmicos muito elevados" têm de recorrer a fornos, onde utilizam gás fóssil. "Neste momento ainda não é possível fazer a transição para fornos a hidrogénio porque os próprios fabricantes dos fornos têm de acomodar o equipamento para essa transição", explica Maria Santos, que acrescenta que são gases e matérias diferentes e têm propriedades químicas e físicas totalmente distintas. "Neste momento, os fabricantes ainda não têm o equipamento desenvolvido para dar resposta a essa procura e utilização." Sim, há muitos projetos em fase-piloto, reconhece a ambientalista, mas ainda não estão em condições de entrar na fase de comercialização. "O desafio tecnológico é, sem dúvida, uma das grandes barreiras", afirma Maria Santos.

Neste momento, ainda não temos produção em grande escala de hidrogénio verde. (...) Tudo se resume a dinheiro e é necessário atrair os investidores para projetos. Maria Santos
Associação Zero
Por outro lado, não nos podemos esquecer da vertente económica. "Tudo se resume a dinheiro e é necessário atrair os investidores para projetos", aponta a ambientalista, que acrescenta que "se estes investidores não tiverem um sinal favorável de que a procura se vai concretizar", ou seja, "sinais económicos de que essa procura vai existir, vão estar algo renitentes a investir".

Um sinal que a Comissão Europeia já deu, com a criação do banco de investimento, que implica um "investimento de 100 mil milhões de euros para a compra de hidrogénio aos próprios produtores". É certo, refere Maria Santos, que não é uma compra exclusiva de hidrogénio verde, mas "já dá um sinal de que os investidores podem investir em projetos de produção que vão ter uma garantia de procura".

O hidrogénio poderá ser um aliado precioso no processo de descarbonização da Europa. No entanto, Maria Santos alerta que é necessário fazer estudos sobre o custo-eficácia para ver onde faz sentido fazer os investimentos e definir prioridades no que concerne à utilização do hidrogénio, nomeadamente os setores onde não é possível eletrificar.
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