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Descarbonizar a economia

É “a” meta da Comissão Europeia. E assenta, em grande medida na transição digital da indústria e empresas. Acontece que mais do que investimentos isso implica uma nova forma de fazer negócio e, mesmo, de ficar em desvantagem concorrencial com outros mercados que não têm as mesmas metas ambientais. Mas é algo que terá de ser feito. A questão é como.

02 de Dezembro de 2021 às 12:30
João Wengorovius Meneses diz que é preciso mudar o paradigma do desenvolvimento económico. Mariline Alves
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A sustentabilidade está na ordem do dia. É tema prioritário na estratégia da Comissão Europeia, faz parte da agenda da COP26, mas e em concreto no ecossistema empresarial português? Qual o ponto de situação das empresas nacionais e, particularmente, da indústria, tida por muitos como uma das vilãs no ranking dos setores poluidores.

João Wengorovius Meneses, secretário-geral da BCSD Portugal, associação sem fins lucrativos que agrega e representa mais de 130 empresas de referência em Portugal, e que se comprometem ativamente com a transição para a sustentabilidade, fez o ponto da situação para o Negócios.

Sobre a questão da descarbonização, a opinião do executivo é perentória: "A descarbonização do planeta só se consegue com uma mudança de paradigma do atual modelo de desenvolvimento, já que, por um lado, depende de sermos capazes de tornar circular um sistema que ainda é profundamente linear e, por outro, ela encontra-se profundamente dependente de sermos bem-sucedidos noutras dimensões de natureza ambiental e social." Já no que concerne à economia circular, uma das soluções apontadas para evitar o desperdício e atenuar na pegada de carbono, a questão é que "há que abandonar rapidamente o atual paradigma de fast capitalism, assente numa lógica de extração, produção e descarte rápido dos produtos". Temos de pensar que a "pegada ecológica - tanto ao nível do consumo de recursos naturais como da produção de resíduos e outras formas de poluição e emissão de gases com efeito de estufa - de um sistema linear é insustentável". Lembra-se de, a partir de determinada data surgirem notícias de que já estamos a consumir a produção do ano seguinte? Pois essa data surge cada vez mais cedo. Não é por acaso que se diz que hoje seriam "necessários dois planetas Terra para que o nosso modelo de desenvolvimento e estilos de vida fossem viáveis".

Então como ultrapassar isto? A tal economia circular só será possível, afirma João Wengorovius Meneses, através da eficiência produtiva e da extensão máxima do período de vida dos produtos - o que depende da conjugação de inovações tecnológicas, de design, de materiais, de modelos de negócios, entre outras, com os incentivos certos à adoção de novos comportamentos, por parte das empresas e dos consumidores, desde logo por via da regulação e do sistema de apoios públicos.

E a verdade é que há muito, mas mesmo muito por fazer. Como refere o secretário-geral da BCSD Portugal, dados do último Circularity Gap Report, indicam que em 2019 apenas 8,6% da economia mundial foi circular.

Por outro lado, alerta João Wengorovius Meneses, nunca seremos capazes de cumprir o Acordo de Paris sem um sério combate à exclusão e às desigualdades sociais, e sem protegermos e valorizarmos devidamente os ecossistemas terrestres e marinhos, nomeadamente, os solos, as florestas, os rios, os oceanos, os corais e a biodiversidade em geral.

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O Acordo de Paris fixou a meta de financiar em 100 mil milhões de dólares/ano os países em desenvolvimento. 
Não há uma solução única, afinal, a "descarbonização é uma meta complexa, que obriga a abordagens holísticas e sistémicas, nomeadamente, a uma análise profunda das premissas e impactos do atual modelo de desenvolvimento". O que não significa que tenhamos de ficar de braços cruzados ou que não haja medidas que não possam ser implementadas. Na verdade há umas quantas medidas urgentes que, segundo o secretário-geral da BCSD Portugal podem acelerar a descarbonização das economias e sociedades.

•Acelerar a eletrificação e aumentar substancialmente a proporção de fontes renováveis no mix energético global;
•Eliminar os subsídios aos combustíveis fósseis e adotar taxas e quotas de carbono em todas as indústrias, de modo a desincentivar o consumo de produtos que incorporem carbono no seu fabrico e distribuição;
•Adotar mecanismos de remuneração que permitam traduzir monetariamente o valor dos serviços que a natureza nos presta, geralmente não remunerados, para garantir que os seus benefícios, essenciais à economia, à regulação do clima e à nossa saúde, são assegurados no futuro;
•Cumprir o compromisso de financiamento dos países em desenvolvimento, definido no Acordo de Paris, de 100 mil milhões dólares /ano, enquanto fator crítico na proteção contra os impactos climáticos e na aceleração da descarbonização a nível global;
•Criar incentivos de mercado que direcionem o financiamento e o investimento para soluções de baixo carbono, nomeadamente, soluções de finanças sustentáveis, procurando assegurar normas universais de medição e reporte do risco e dos impactos climáticos;
•Criar mecanismos para qualificação e requalificação das pessoas mais afetadas pela transição, para que ninguém fique para trás e se garanta que os custos e benefícios da ação climática são distribuídos de forma equitativa;
•Apoiar o desenvolvimento de novas tecnologias e a alteração de métodos produtivos, através da colaboração entre empresas e academia, e da dinamização de parcerias público-privadas em prol da neutralidade carbónica;
•Criar medidas de incentivo para transições mais rápidas em setores-chave, tais como o agroalimentar e a mobilidade, ambos decisivos não apenas para o cumprimento do Acordo de Paris, mas também para a qualidade de vida das pessoas.

Novas formas de pensar o negócio

Mas o que isto significa exatamente para as empresas portuguesas? Sobre isso João Wengorovius Meneses refere que estas devem encarar a transição para a sustentabilidade como uma jornada, um processo. "Começa por ser necessário ter uma equipa e fazer um diagnóstico das cadeias de valor", refere, acrescentando que a maioria das empresas sente dificuldade em investir hoje em algo que só trará benefícios amanhã - sendo que "alguns dos benefícios da transição para a sustentabilidade não serão de natureza económica, nem apropriáveis pela empresa".

Mas é algo necessário. Não só por obrigações regulatórias, mas também por imposição das novas gerações de consumidores que "querem poder fazer do consumo um ato de cidadania", a par dos trabalhadores e investidores. ". É por isso que, a par da transformação digital, a transição para a sustentabilidade será a maior transformação das sociedades e das economias ao longo do século XXI."

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Até 2030, as empresas têm um quadro de apoios públicos na ordem dos 60 mil milhões de euros.
Esta é uma nova forma de pensar o negócio, que traz mudanças profundas. A vantagem é que, para já, as empresas portuguesas "têm um quadro de apoios públicos europeus, até 2030, bastante favorável, já que não só o seu valor é bastante elevado (cerca de 60 mil milhões de euros), como as prioridades definidas pelo Governo português para a década são precisamente a transformação digital e a sustentabilidade ambiental e social". Mas só isso não chega. Como lembra João Wengorovius Meneses, para garantir a maior eficácia possível na afetação destes avultados recursos financeiros, seria importante o Governo desenhar uma estratégia mais clara para a década, setor a setor, concretizando melhor o Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050 e o Plano Nacional Energia e Clima 2030 (entre outros planos e roteiros oficiais) em medidas concretas - por exemplo, ao nível da estratégia fiscal e regulatória para a década. A par de um maior envolvimento por parte das associações empresariais setoriais.

Independentemente das dificuldades este é um passo importante a fazer. Porque os consumidores começam a privilegiar as empresas respeitadoras e, pelo contrário, a penalizar as poluidoras. Esta mudança de comportamento só ainda não é mais massiva, constata o secretário-geral da BCSD Portugal, porque, na generalidade dos bens, maior sustentabilidade implica um preço superior. No entanto, isso tentará ser ultrapassado.

E aqui faz-se outra questão extremamente importante para as empresas portuguesas (mas não só). Enveredar pelo caminho da sustentabilidade acarreta investimentos. E pode mesmo torná-las menos competitivas quando comparadas com companhias de mercados que (ainda) não têm estas preocupações. É precisamente devido a esta questão que João Wengorovius Meneses insiste que a mudança de paradigma depende de investimento público e de parcerias público-privadas. Mas, mais ainda. A União Europeia - e, no futuro, o mundo - tem de rever a sua política alfandegária, afirma. No caso das exportações (para outros continentes), o executivo defende que "a nossa estratégia tem de assentar em produtos diferenciados e de elevada qualidade para pessoas com maior poder de compra, e em novos modelos de negócio para pessoas com menor poder de compra".

Quer isto dizer que Portugal (e a Europa) não conseguirá cumprir os objetivos a que se comprometeu? Para isso seria necessário ter uma redução anual incremental de cerca de 7% ao longo desta década - no ano passado conseguimos apenas 5,8%.

Isto significa, na opinião de João Wengorovius Meneses, que "será mesmo muito difícil sermos bem-sucedidos no cumprimento do Acordo de Paris - e, seguramente, não estamos a evoluir ao ritmo necessário", que acrescenta que ainda que a UE tenha recursos financeiros e um ecossistema com um potencial de inovação ímpares a nível global, a verdade é que as medidas mais difíceis que seria necessário tomar para que essa redução ocorra ainda não começaram a ser tomadas. Quanto a Portugal, "dada a sua situação de partida, até teria capacidade para antecipar a meta da neutralidade carbónica de 2050 para 2040, mas não vejo sinais de que tal vá acontecer".
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