Opinião
A guerra da Califórnia contra Trump
À medida que a Califórnia prossegue os seus esforços para contrariar as políticas da administração Trump, podemos questionar-nos se a sua abordagem levará a um desafio constitucional.
Se olharmos para além das manchetes sobre Donald Trump nos meios de comunicação, podemos discernir uma mudança global nas forças políticas, económicas e culturais que podem ter muito mais consequências para a América e para o mundo do que a própria presidência de Trump. Uma das mudanças mais significativas é o desgaste das relações entre os governos central e subnacional, e nacional e supranacional.
Os americanos interagem com o governo sobretudo ao nível estatal e local, através de escolas e estradas, policiais e hospitais. E na Califórnia, entre outros estados, as exigências de maior autonomia local estão a aumentar, fazendo eco, ocasionalmente, da retórica dos secessionistas catalães ou dos apoiantes do Brexit no Reino Unido. Com o controlo quase monopolista dos governos estatal e locais da Califórnia, os democratas estão a tentar contrariar praticamente todas as políticas da Trump.
Por exemplo, um projecto de lei na legislatura estatal anularia o limite da nova lei tributária sobre as deduções do imposto sobre os rendimentos e do imposto sobre a propriedade - uma alteração que atingirá muito a Califórnia porque a região tem uma das maiores taxas de imposto no país e os seus residentes são proprietários de casas caras. De acordo com a lei estatal proposta, os californianos poderiam "doar" os seus impostos estatais para uma instituição de caridade como contribuições de caridade dedutíveis.
Mas o Internal Revenue Service detectará rapidamente este estratagema. As contribuições de caridade só são dedutíveis ao nível federal se o doador não receber mais do que o valor acessório da contribuição, o que, obviamente, não seria o caso nesta situação. Na verdade, nem mesmo o valor de mercado de uma refeição num jantar de caridade é dedutível.
A partir do próximo ano, a nova lei tributária federal também revogará o mandato individual do Affordable Care Act (Obamacare), que impõe uma multa aos que não têm seguro de saúde. Como a revogação poderia acelerar um aumento nos prémios de seguro do Obamacare, muitos democratas da Califórnia estão a exigir um sistema de cuidados de saúde com um único pagador, financiado pelo governo, como acontece no Canadá e na Europa. Não importa que tal sistema possa triplicar o Orçamento do Estado.
Além disso, porque a Califórnia se considera na vanguarda da energia verde, as agências estatais responderam à proposta de Trump de abrir a perfuração de petróleo offshore ameaçando banir o transporte de petróleo através do estado, mesmo nos oleodutos existentes.
A fonte de maior desacordo é a política de imigração. Desde que se declarou uma "cidade santuário" em 1989, São Francisco proibiu a sua força policial de cooperar plenamente com os agentes federais de imigração. Mas, a partir do ano passado, todo o estado foi declarado um "santuário", e o procurador-geral da Califórnia, Xavier Becerra, planeia agora multar os empregadores que cooperem com os funcionários federais da imigração. Com as tensões entre as agências federais e estatais a aumentar, muitos californianos estão a ser colocados na posição insustentável de terem de pagar multas estatais ou violarem as leis federais.
Em todas estas questões, existem dois argumentos opostos e parcialmente válidos. Consideremos a imigração. Enquanto a grande maioria dos imigrantes ilegais estão a trabalhar para apoiar as suas famílias e melhorar a vida dos seus filhos, alguns cometem crimes graves ou pertencem a gangues violentos.
Trump concentra-se nestes últimos para defender o aumento da segurança nas fronteiras, invocando frequentemente exemplos de americanos mortos por imigrantes ilegais que regressaram depois de serem repetidamente deportados. Os opositores de Trump argumentam que os imigrantes ilegais são muitas vezes vítimas - ou testemunhas - de crimes graves, mas têm relutância em ir à polícia porque temem a deportação.
Ambos os lados têm os seus argumentos; mas, infelizmente, deixaram de se envolver um com o outro. Assim, quando a administração Trump propôs recentemente um plano para a reforma da imigração com cedências para ambos os lados, foi denunciado instantaneamente por activistas anti-imigração e defensores acérrimos da imigração.
O plano concederia um estatuto legal permanente e um caminho para a cidadania para 1,8 milhões de pessoas que foram trazidas ou enviadas ilegalmente para o país em crianças. É mais do dobro do número de pessoas que foram protegidas sob o programa Deferred Action for Childhood Arrivals (DACA), do presidente Obama. Em troca, Trump quer mais 25 mil milhões de dólares para a segurança na fronteira com o México - incluindo o prometido muro - e reformas para limitar a imigração legal baseada na família e no favorecimento de trabalhadores mais qualificados, que é a norma na maioria dos países desenvolvidos.
Os radicais anti-imigração rejeitaram o plano de Trump como uma forma de amnistia. Ao mesmo tempo, a líder democrata na Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, descreveu-o como um esquema para "tornar a América branca novamente". Mas aqui é que está a questão: o plano da administração Trump é a proposta de reforma da imigração mais realista das últimas décadas. Se os democratas fossem inteligentes, conteriam o seu ódio e reconheceriam que a credibilidade de Trump junto dos republicanos anti-imigração o coloca numa posição ideal para negociar um pacote bipartidário.
À medida que a Califórnia prossegue os seus esforços para contrariar as políticas da administração Trump, podemos questionar-nos se a sua abordagem levará a um desafio constitucional. Os estados têm autoridade legal para adoptar políticas que estão em desacordo com a política federal. Na verdade, a Décima Emenda da Constituição dos EUA reserva expressamente aos estados todos os poderes não delegados ao governo federal. E os estados podem processar o governo federal, como governadores republicanos e procuradores-gerais fizeram para revogar vários regulamentos e ordens executivas da era de Obama.
Mas o Supremo Tribunal dos EUA decidiu repetidamente que os estados não podem invalidar ou transgredir a lei federal - um direito que alguns estados do sul reivindicaram em meados do século XX para resistir à integração escolar. Este é um princípio constitucional que remonta a meados do século XIX, quando o Supremo Tribunal anulou uma decisão do Tribunal do Wisconsin que invalidava o abominável Fugitive Slave Act de 1850.
Em menos de nove meses, a Califórnia realizará eleições para o cargo de governador, um assento no Senado dos EUA e 53 assentos na Câmara dos Representantes. Assim, a retórica da "resistência" a Trump deverá aquecer - e os tribunais ficarão provavelmente mais ocupados, a classificar o que é e não é legal.
Michael J. Boskin é professor de Economia na Universidade de Stanford e membro sénior da Hoover Institution. Foi chairman do conselho de assessores económicos de George H. W. Bush de 1989 a 1993.
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Tradução: Rita Faria