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25 de Janeiro de 2017 às 20:00

O abandono do progresso

Para quem acredita que o progresso deve continuar a ser a bússola que orienta as sociedades no século XXI, a prioridade é redefini-lo no contexto actual e delinear a agenda política correspondente.

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Margaret Thatcher e Ronald Reagan são recordados pela revolução do "laissez-faire" que lançaram no início dos anos 1980. Fizeram campanha e ganharam com a promessa de que o capitalismo de livre mercado iria desencadear o crescimento e aumentar a prosperidade. Em 2016, Nigel Farage, então líder do Partido da Independência do Reino Unido (UKIP), que idealizou o Brexit, e o presidente eleito dos EUA, Donald Trump, fizeram campanha e ganharam numa base muito diferente: nostalgia. As suas promessas eram de "recuperar o controlo" e "tornar a América grande novamente" – por outras palavras, voltar atrás no tempo.

 

Como Mark Lilla da Universidade de Columbia observou, o Reino Unido e os Estados Unidos não são os únicos a passar por um revivalismo reaccionário. Em muitos países avançados e emergentes, o passado, de repente, parece muito mais apelativo do que o futuro. Em França, Marine Le Pen, candidata da direita nacionalista às próximas eleições presidenciais, apela explicitamente à era em que o governo francês controlava as fronteiras, protegia a indústria e geria a moeda. Esse tipo de soluções funcionou na década de 1960, afirma a líder da Frente Nacional, pelo que implementá-las agora traria de volta a prosperidade.

 

Obviamente, esses apelos atingiram em cheio os eleitorados em todo o Ocidente. O principal factor subjacente a esta mudança nas atitudes públicas é que muitos cidadãos perderam a fé no progresso. Já não acreditam que o futuro lhes trará melhorias materiais e que os seus filhos terão uma vida melhor do que a deles. Olham para trás porque têm medo de olhar para frente.

 

O progresso perdeu o seu brilho por várias razões. A primeira é uma década de desempenho económico desanimador: para qualquer pessoa com menos de 30 anos, especialmente na Europa, a nova normalidade é a recessão e a estagnação. O impacto da crise financeira foi pesado. Além disso, o ritmo dos ganhos de produtividade nos países avançados (e, em grande medida, nos países emergentes) continua a ser decepcionantemente baixo. Como resultado, são poucos os ganhos de rendimentos que se podem distribuir – e ainda menos nas sociedades em envelhecimento, onde há menos pessoas a trabalhar e os que não têm trabalhão vivem mais tempo. Essa triste realidade pode não durar (nem todos os economistas concordam com isso); mas não se pode culpar os cidadãos por levarem a realidade à letra.

 

A segunda razão pela qual o progresso perdeu credibilidade é que a revolução digital corre o risco de minar a classe média que formou a espinha dorsal das sociedades do pós-guerra das economias avançadas em todo o mundo. Enquanto o progresso tecnológico foi destruindo empregos não qualificados, a resposta política directa foi a educação. A robotização e a inteligência artificial estão a destruir empregos de especialização média, conduzindo a um mercado de trabalho polarizado, com empregos criados nos dois extremos da distribuição salarial. Para aqueles cujas competências perderam valor e cujos empregos estão a ser ameaçados pela automação, isso dificilmente conta como "progresso".

 

A terceira razão é a distribuição distorcida dos ganhos nos rendimentos nacionais que prevalece em muitos países. O progresso social assentava na promessa de que os benefícios do progresso tecnológico e económico seriam partilhados. Mas a recente pesquisa de Raj Chetty e dos seus colegas mostra que 90% dos adultos americanos nascidos no início da década de 1940 ganhava mais do que os seus pais, uma proporção que tem diminuído constantemente desde então, para 50%, em relação aos que nasceram em meados da década de 1980. Só um quarto deste declínio se explica pelo crescimento económico mais lento; o restante é atribuível a uma distribuição cada vez mais desigual do rendimento. Quando a desigualdade atinge estas proporções, desgasta a própria base do contrato social. É impossível falar de progresso geral quando as crianças têm uma grande probabilidade de ficar pior do que os seus pais.

 

Em quarto lugar, a nova desigualdade tem uma dimensão espacial politicamente saliente. Pessoas com qualificações e profissionalmente bem-sucedidas, cada vez mais casam e vivem próximas umas das outras, principalmente em áreas metropolitanas grandes e prósperas. Os excluídos também se casam e vivem próximos uns dos outros, principalmente em áreas deprimidas ou cidades pequenas. O resultado, contam Mark Muro e Sifan Liu, da Brookings Institution, é que os condados dos EUA que Trump conquistou representam apenas 36% do PIB, enquanto os que Hillary Clinton ganhou representam 64%. A enorme desigualdade espacial cria grandes comunidades de pessoas sem futuro, onde a aspiração predominante só pode ser a de voltar atrás no tempo.

 

A fé no progresso foi um princípio chave do contrato político e social das décadas do pós-guerra. Sempre fez parte do ADN da esquerda; mas a direita também o abraçou. Depois do que aconteceu em 2016, o apoio a um conceito forjado no Iluminismo não pode mais ser dado como certo.

 

Para quem acredita que o progresso deve continuar a ser a bússola que orienta as sociedades no século XXI, a prioridade é redefini-lo no contexto actual e delinear a agenda política correspondente.

 

Mesmo deixando de lado outras dimensões importantes da questão - como o medo da globalização, as crescentes dúvidas éticas sobre as tecnologias contemporâneas e as preocupações com as consequências ambientais do crescimento - a redefinição do progresso é um desafio com uma magnitude assustadora. Isso deve-se, em parte, ao facto de uma agenda sensata dever abordar simultaneamente as suas dimensões macroeconómicas, educacionais, distributivas e espaciais. E também porque as soluções de ontem pertencem ao passado: um pacto social projectado para um ambiente de alto crescimento, onde o progresso tecnológico gera mais igualdade, não ajudará a resolver os problemas de um mundo de baixo crescimento e de inovação tecnológica divisiva.

 

Em suma, a justiça social não é uma questão a ter em conta apenas em ambientes favoráveis. Durante várias décadas, o crescimento tem servido de substituto para políticas sensíveis de coesão social. O que as sociedades avançadas precisam agora são pactos sociais que sejam resistentes às mudanças demográficas, disrupções tecnológicas e choques económicos.

 

Em 2008, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, fez campanha com base na "esperança" e na "mudança em que podemos acreditar". A resposta ao revivalismo reaccionário deve ser dar forma a essa promessa, em grande medida não cumprida.

Jean Pisani-Ferry é professor na Hertie School of Governance em Berlim e comissário-geral da France Stratégie.

Copyright: Project Syndicate, 2017.
www.project-syndicate.org
Tradução: Rita Faria


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