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Hernando de Soto 07 de Abril de 2016 às 20:30

Um impasse mexicano para o Papa

A ausência de direitos é um problema que nem é exclusivo dos Estados Unidos nem está confinado aos imigrantes que não detêm autorização legal para permanecer no país em que residem.

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Em 17 de Fevereiro o Papa Francisco celebrou uma missa na Ciudade Juárez, México, mesmo a sul da fronteira com os Estados Unidos. Oportunidade naturalmente aproveitada para apoiar os pobres no México e aqueles que migraram para norte.

 

Afinal, foi isso que já fizera em Setembro, na sua homilia no Madison Square Garden, em Nova Iorque. Referindo-se aos 11 milhões de imigrantes ilegais nos Estados Unidos, ele pediu aos que o ouviam para apoiarem "aquelas pessoas que não parecem pertencer, ou que são cidadãos de segunda classe… porque não têm o direito de lá estar".

 

Mas a ausência de direitos é um problema que nem é exclusivo dos Estados Unidos nem está confinado aos imigrantes que não detêm autorização legal para permanecer no país em que residem. Muito mais prejudicial é a dificuldade que aflige os cinco mil milhões de pessoas que não têm direitos patrimoniais documentados. Somente no México, há 10 milhões de casas urbanas, 137 milhões de hectares de terra e seis milhões de negócios cujos direitos dos donos estão deficientemente protegidos.

 

Ao focar-se essencialmente na imigração sem documentos no seu discurso em Juárez, a sua mensagem correu o risco de cair facilmente no debate acerca das preocupações securitárias dos Estados Unidos e no direito soberano dos países protegerem as suas fronteiras. Mas ao alargar a discussão incluindo a importância de documentação clara sobre direitos de propriedade dentro dos países, ele esteve em chão bem mais firme. Direitos de propriedade são um direito universal inscrito na Constituição dos Estados Unidos e na Carta das Nações Unidas. Na verdade, é a procura destes mesmos direitos que motiva muitos dos mais pobres do mundo a atravessar fronteiras para países como os Estados Unidos.

 

Para aqueles que vivem nas partes mais ricas do mundo, é fácil assumir como um dado adquirido a existência de direitos de propriedade claros. Mas a realidade é que apenas 2,3 mil milhões de pessoas têm documentos que protegem e alavancam os seus direitos – incluindo, aproximadamente, mil milhões de pessoas que vivem no Japão, Singapura, e nas democracias ocidentais e outros mil milhões em alguns países em desenvolvimento e antigas Repúblicas soviéticas.

 

A documentação não é apenas um carimbo burocrático num pedaço de papel. É crucial para o progresso económico e a inclusão. A razão pela qual os indevidamente documentados têm interesse em estar devidamente documentados – independentemente de o saberem, ou não – é que direitos de propriedade claros asseguram aos seus donos e ao que eles detêm um grande valor adicional.

 

Nos Estados Unidos ou na Europa, por exemplo, uma casa não serve apenas de abrigo; é também uma morada que pode servir para identificar pessoas mediante fins comerciais, judiciais ou cívicos, e um terminal seguro para serviços tais como energia, água, saneamento ou linhas telefónicas. A documentação também permite utilizar activos enquanto instrumentos financeiros, garantindo aos seus donos acesso a crédito e capital. Se alguém quiser contrair crédito – quer seja uma empresa mineira do Colorado ou um sapateiro grego em Nova Iorque – tem primeiro de apresentar documentos comprovativos de propriedade como garantia.

 

Como já demonstrei noutro lugar, os pobres do mundo possuem cerca de 18 biliões de activos não documentados apenas no sector imobiliário. Mas esses activos nunca irão atingir o seu completo valor se não estiverem documentados. E assim, não podem ser utilizados para captar capital. Nem podem acrescentar-se a outros activos de forma a constituir propriedades mais complexas e valiosas.

 

A falta de direitos de propriedade também desempenha um papel importante em duas áreas de preocupação tanto para o Papa como para muitos líderes norte-americanos: a instabilidade no Médio Oriente e no Norte de África e a protecção ambiental.

 

A Primavera Árabe, deve ser recordado, começou depois de um vendedor de rua tunisino se ter imolado no fogo como protesto contra a expropriação arbitrária dos seus activos não documentados. E muita da raiva que levou as pessoas às ruas, arrastou países até ao ponto do colapso e guiou milhões para longe das suas casas, foi motivada pelo desejo de direitos bem definidos, incluindo os da protecção de propriedade.

 

De forma semelhante, os direitos de propriedade são críticos para a protecção do ambiente. Sem documentos claros, é impossível às autoridades determinar quem é responsabilizável pela degradação de recursos naturais ou responsável pelo restabelecimento de ecossistemas locais. Dados actualizados são também necessários para ajustar estratégias de conservação às oportunidades e ameaças que se levantam à medida que a indústria se expande para territórios virgens.

 

Nas nascentes do Rio Amazonas, por exemplo, a maioria das 1.496 comunidades locais não consegue definir fronteiras precisas – recorrendo a coordenadas universais e a leis de propriedade vinculativas – nas terras que lhes pertencem. Como resultado, os residentes individuais lutam para protegerem os seus activos, para se adaptarem às ameaças ambientais ou para responderem aos desafios e oportunidades da crescente globalização.

 

O facto de que Francisco está a abordar a questão da documentação é importante. Significa que o Vaticano não está somente a perguntar o porquê de tão poucos terem tanto, mas também o porquê de tantos terem tão pouco. Ao alargar a sua comparação àqueles que não têm direitos de propriedade, o Papa abre uma oportunidade para se fazer muito para muitos.

 

Hernando de Soto é presidente do Instituto para a Liberdade e Democracia.

 

Direitos de Autor: Project Syndicate, 2016.

www.project-syndicate.org

Tradução: David Santiago

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