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A ilusão da normalização

A tendência psicológica para esperar um regresso à "normalidade" continuará forte. Mas os condutores do desempenho económico pós-crise são tão profundos que não é provável um regresso à normalidade em breve.

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Há uma tendência psicológica para acreditar que os eventos excepcionais acabam por dar lugar a um regresso aos "tempos normais". Muitos comentadores económicos estão agora concentrados na "saída" de quase uma década de política monetária ultra-expansionista, com os bancos centrais a reduzirem os seus balanços para níveis "normais" e a aumentarem gradualmente os juros. Mas estamos longe de regressar à normalidade pré-crise.

 

Depois de anos de deterioração das estimativas de crescimento global, 2017 assistiu a uma melhoria significativa, e há bons argumentos para subidas ligeiras nas taxas de juro. Mas as economias avançadas ainda enfrentam uma inflação muito baixa e um crescimento moderado, e a recuperação continuará a depender de estímulos orçamentais, apoiados, se necessário, pela monetização da dívida.

 

Desde 2007, o PIB per capita na Zona Euro, Japão e Estados Unidos cresceu apenas 0,3%, 4,4% e 5%, respectivamente. Parte da desaceleração face à média anual de 1,5% a 2%, de antes da crise, pode reflectir factores do lado da oferta; o crescimento da produtividade pode enfrentar dificuldades estruturais.

 

Mas parte do problema está relacionado com uma procura nominal deficitária. Apesar dos esforços dos bancos centrais, de 2007 a 2016, o PIB nominal cresceu 2,8% ao ano nos EUA, 1,5% na Zona Euro e apenas 0,2% no Japão, tornando impossível alcançar um crescimento moderado e uma inflação anual em linha com as metas de 2%. A inflação nos EUA já não supera a meta da Reserva Federal há cinco anos, e tem revelado uma tendência descendente nos últimos cinco meses.  

 

Diante dessa anormalidade, alguns economistas procuram factores pontuais, como minutos "gratuitos" para os telemóveis dos EUA, que estão a pressionar temporariamente as medidas de inflação dos EUA. Mas os preços das comunicações móveis nos EUA não podem explicar porque é que a inflação subjacente no Japão está presa num patamar próximo de zero. São factores comuns a longo prazo que devem explicar este fenómeno global.

 

Os desenvolvimentos do mercado de trabalho são factores chave, com o crescimento salarial persistentemente baixo, mesmo com o desemprego a cair para os níveis "normais" anteriores à crise. O Japão é o caso mais extremo: com uma força de trabalho cada vez mais pequena, uma imigração mínima e uma taxa de desemprego de 2,8%, todos os modelos prevêem uma aceleração do crescimento salarial. Mas por mais que o primeiro-ministro Shinzo Abe exija que os empregadores ofereçam aos trabalhadores japoneses um aumento, o crescimento dos salários continua lento: em Junho, os salários subiram apenas 0,4%. Também nos Estados Unidos os dados mensais apontam para um forte crescimento do emprego e um crescimento salarial surpreendentemente baixo.

 

Três factores podem explicar essa tendência. Durante 30 anos, os mercados de trabalho tornaram-se mais flexíveis, com o poder sindical dramaticamente enfraquecido. Ao mesmo tempo, a globalização expôs os trabalhadores do sector transaccionável à concorrência salarial global. Mas, mais importante que tudo, a tecnologia da informação oferece oportunidades cada vez maiores para automatizar todas as actividades económicas. Num mercado de trabalho totalmente flexível, com um exército de robôs, o potencial de automação generalizada pode deprimir o crescimento dos salários reais, mesmo com pleno emprego.

 

Ao mesmo tempo, a procura nominal ainda está a ser travada pelo excesso de dívida. Entre 1950 e 2007, a dívida privada nas economias avançadas cresceu de 50% para 170% do PIB. Desde 2008, a dívida passou do sector privado para  o público, com grandes défices orçamentais, uma consequência inevitável da recessão pós-crise e essencial para manter uma procura adequada. Além disso, a economia global foi mantida em andamento pelo enorme aumento da alavancagem da China, com o rácio da dívida a crescer de cerca de 140% do PIB, em 2008, para 250% actualmente. Em todo o mundo, a dívida pública e privada total atingiu um recorde, aumentando de 180% do PIB global em 2007 para 220% em Março de 2017. Como resultado, as taxas de juro não podem voltar aos níveis anteriores à crise sem arriscar uma nova recessão.

 

Perante este aumento da dívida, a política monetária expansionista, por si só, estava condenada a ser ineficaz e, além de um certo ponto, potencialmente prejudicial e contraproducente. Nem o investimento nem o consumo respondem fortemente a taxas de juro cada vez mais baixas quando o fardo da dívida é muito elevado. Ao mesmo tempo, as taxas de juro muito baixas geram aumentos nos preços dos activos, que beneficiam os já ricos e reduzem o rendimento dos depositantes bancários menos ricos, que em algumas circunstâncias podem reduzir o consumo de forma mais pronunciada do que os mutuários profundamente endividados aumentam.

 

Neste contexto, como argumentou o economista da Universidade de Princeton, Christopher Sims, em 2016, a política monetária relaxada não pode funcionar através dos canais de transmissão normais e só é eficaz se facilitar a expansão orçamental, mantendo os custos de financiamento do governo baixos. O PIB nominal nos EUA cresceu mais rápido do que na Zona Euro desde 2007, porque os EUA apresentaram défices de 7,2% do PIB, em média, contra os 3,5% da Zona Euro. O crescimento global de hoje é fundamentalmente sustentado pelo défice orçamental da China, de 3,7% do PIB, que compara com 0,9% em 2014. O crescimento contínuo do Japão é assegurado apenas por grandes défices orçamentais que se estendem até à década de 2020; o Banco do Japão, que detém obrigações do governo equivalentes a cerca de 75% do PIB, deterá algumas deles para sempre, monetizando permanentemente dívidas acumuladas.

 

A recuperação parcial deste ano não reflecte, por isso, nem um regresso à normalidade anterior à crise, nem o sucesso da política monetária por si só. Mas, mesmo que a inflação permaneça abaixo da meta, ainda há bons argumentos a favor de um aumento dos juros. Uma vez que a política monetária cada vez mais relaxada, por si só, é cada vez menos eficaz a partir de um certo ponto, esta pode ser parcialmente revertida com pouco perigo para a procura nominal; e as taxas de juro ligeiramente mais elevadas moderariam, mesmo que suavemente, o impacto desigual do actual mix de políticas.

 

Mas os aumentos dos juros devem e vão ser muito pequenos. Duvido que a taxa directora nos Estados Unidos exceda os 2,5% em 2020, enquanto os juros no Japão e na Zona Euro só vão aumentar marginalmente, permanecendo provavelmente bem abaixo de 1%. É mais provável que a inflação fique abaixo das metas de 2% do que as supere. E o crescimento moderado, na melhor das hipóteses, será insuficiente para anular o impacto da década perdida de 2007-2017.

 

A tendência psicológica para esperar um regresso à "normalidade" continuará forte. Mas os condutores do desempenho económico pós-crise são tão profundos que não é provável um regresso à normalidade em breve. 

Adair Turner é presidente do Institute for New Economic Thinking e antigo chairman da Autoridade de Serviços Financeiros do Reino Unido. O seu último livro é Between Debt and the Devil.

 

Copyright: Project Syndicate, 2017.
www.project-syndicate.org
Tradução: Rita Faria

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