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Opinião
20 de Outubro de 2010 às 11:52

Virtude prematura

A insistência da Administração de Barack Obama em matéria de rectidão orçamental é ditada não pela necessidade financeira, mas por considerações de ordem política.

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Os Estados Unidos não são um dos países altamente endividados da Europa, que têm de pagar prémios de risco muito elevados face ao preço a que a Alemanha pode pedir dinheiro emprestado. As taxas de juro sobre as Obrigações do Tesouro norte-americanas têm vindo a cair e estão perto de mínimos históricos, o que significa que os mercados financeiros estão a antecipar uma deflação e não inflação.

No entanto, o presidente Barack Obama está sob pressão política. A opinião pública norte-americana está profundamente preocupada com a acumulação de dívida pública e a oposição republicana tem sido extremamente bem sucedida em pôr as culpas do "crash" de 2008 - e da subsequente recessão e elevado desemprego - na inaptidão do governo, ao mesmo tempo que argumenta que o pacote de estímulo à economia foi em grande parte desperdiçado.

Há um certo fundo de verdade nessa afirmação, mas trata-se de uma opinião parcial. O "crash" de 2008 deveu-se, antes de mais, a um desmoronamento dos mercados, cuja responsabilidade é das autoridades reguladoras (e outras) norte-americanas, já que estas não souberam agir a tempo. No entanto, sem a existência de um plano de resgate, o sistema financeiro teria continuado paralisado, tornando a subsequente recessão muito mais profunda e prolongada. É certo que o pacote de estímulo económico dos Estados Unidos foi grandemente desperdiçado, mas isso deveu-se sobretudo ao facto de a maior parte desses estímulos terem sido destinados a sustentar o consumo em vez de serem consagrados à correcção dos desequilíbrios subjacentes.

O erro manifesto da Administração Obama esteve na forma como resgatou o sistema bancário: ajudou os bancos a saírem de apuros, ao comprar parte dos seus activos tóxicos e ao fornecer-lhes dinheiro barato. Esta escolha foi também orientada por imperativos de ordem política: teria sido muito mais eficiente aumentar a participação accionista do Estado nos bancos, mas Barack Obama receou ter de enfrentar acusações de nacionalização e de socialismo.

Essa decisão voltou-se contra o próprio governo, com sérias repercussões políticas. A opinião pública, ao mesmo tempo que se viu confrontada com uma escalada dos custos dos cartões de crédito, de 8% para perto de 30%, viu também os bancos registarem elevados lucros e pagarem avultados bónus. O movimento Tea Party soube explorar este ressentimento e Obama está hoje na defensiva. Os republicanos fazem campanha contra quaisquer estímulos adicionais e a Administração defende agora a rectidão orçamental, apesar de reconhecer que a redução do défice poderá ser prematura.

Na minha opinião, há inúmeros argumentos que justificam novas medidas de estímulo. Convenhamos que o consumo não pode ser sustentado indefinidamente através de um aumento da dívida pública; o desequilíbrio entre consumo e investimento tem de ser corrigido. Mas reduzir os gastos governamentais numa altura de desemprego em larga escala seria ignorar as lições deixadas pela História.

A solução óbvia é fazer uma distinção entre investimentos e o actual consumo. Depois, há que tentar aumentar os investimentos, ao mesmo tempo que se reduz o consumo. Contudo, isso parece ser politicamente insustentável. Grande parte dos norte-americanos estão convencidos de que o governo é incapaz de gerir de forma eficiente os investimentos destinados a melhorar o capital físico e humano do país.

Uma vez mais, esta convicção é parcialmente justificada: um quarto de século de críticas ao governo traduziu-se numa má governação. Mas o argumento de que as medidas de relançamento económico são inevitavelmente um desperdício é notoriamente falso: o New Deal deu origem à Tennessee Valley Authority, à ponte Triborough em Nova Iorque e a muitas outras "utilities" públicas que ainda hoje estão em funcionamento.

Além disso, a verdade pura e simples é que o sector privado não está a utilizar os recursos disponíveis. Barack Obama tem-se mostrado bastante favorável ao mundo dos negócios e as grandes empresas têm vindo a operar com elevados lucros. No entanto, em vez de investirem, estão a acumular liquidez. Talvez uma vitória dos republicanos acabe por impulsionar a confiança das empresas, mas entretanto o investimento e o emprego precisam de um estímulo orçamental (em contrapartida, é muito provável que as medidas de estímulo monetário contribuam mais para que as empresas concorram entre si do que para procederem a contratações de trabalhadores).

Resta ainda determinar que nível de endividamento público é considerado elevado, porque a tolerância face à dívida estatal depende em grande medida das percepções dominantes. O prémio de risco, aliado à taxa de juro, é a variável mais importante: assim que começar a aumentar, a actual taxa de financiamento do défice torna-se insustentável. Mas não se sabe qual é o ponto de ruptura.

Analisemos o Japão, cuja dívida se aproxima dos 200% do seu Produto Interno Bruto anual - um dos rácios mais elevados do mundo. Ainda assim, a rendibilidade das obrigações a 10 anos é de pouco mais de 1%. O Japão já teve, outrora, uma elevada taxa de poupança, mas esta está actualmente ao mesmo nível que a dos Estados Unidos, devido ao envelhecimento e à diminuição da população. A grande diferença - a balança comercial do Japão é excedentária e a dos EUA é deficitária - não é muito importante, desde que a política cambial da China a obrigue a acumular activos em dólares de uma ou de outra forma.

A verdadeira razão pela qual as taxas de juro do Japão estão tão baixas tem a ver com o facto de o sector privado japonês ter pouco apetite pelo investimento no estrangeiro e prefira as obrigações governamentais a 10 anos com uma rendibilidade de 1% do que aplicações de dinheiro que rendem 0%. Tendo em conta a diminuição dos preços e o envelhecimento da população, os japoneses consideram atractivos os retornos reais. Desde que os bancos norte-americanos possam pedir dinheiro emprestado a uma taxa próxima de zero e comprar Obrigações do Tesouro sem terem de empenhar os capitais próprios, e desde que o dólar não desvalorize face ao renmimbi, então as taxas de juro norte-americanas poderão muito bem seguir a mesma tendência.

Isso não significa que os Estados Unidos devam manter a taxa de desconto próxima de zero e continuar a aumentar o endividamento público indefinidamente. Assim que a economia recomece a crescer, as taxas de juro subirão - talvez precipitadamente, se a dívida acumulada for muito elevada. Mas se esta hipótese pode travar a retoma, o endurecimento prematuro a nível orçamental fa-lo-á ainda mais cedo.

A política certa está em reduzir os desequilíbrios o mais depressa possível, ao mesmo tempo que se reduz o encargo da dívida. Isto pode ser concretizado de várias formas, mas o objectivo declarado da Administração Obama - reduzir para metade o défice orçamental até 2013, ao passo que a economia opera a metade da sua capacidade - não é uma delas. Investir em infra-estruturas e na educação faz mais sentido. Ou então criar uma moderada taxa de inflação, depreciando o dólar face ao renmimbi.

O obstáculo que se coloca a este programa não é a economia, mas sim as concepções equivocadas em torno dos défices orçamentais que estão a ser exploradas para fins partidários e ideológicos.


George Soros é chairman do Soros Fund Management.

© Project Syndicate, 2010.
www.project-syndicate.org
Tradução: Carla Pedro




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