Opinião
Putin senhor de todas as rússias
A demissão do responsável pelas finanças de Moscovo na última década foi a primeira consequência do anúncio oficial do retorno do homem forte da Rússia à presidência e sinal da instabilidade do sistema autocrático centrado em Vladimir Putin.
A demissão do responsável pelas finanças de Moscovo na última década foi a primeira consequência do anúncio oficial do retorno do homem forte da Rússia à presidência e sinal da instabilidade do sistema autocrático centrado em Vladimir Putin.
Aleksei Kudrin há mais de um ano que assumia publicamente significativas divergências políticas com o presidente Dmitri Medvedev, evitando, no entanto, criticar directamente o chefe do governo.
A atitude do ministro das Finanças - tal como Medvedev um dos quadros de São Petersburgo que fizeram carreira com Putin na capital na segunda metade dos anos 90 - reflectia a sua ambição em assumir a direcção do governo.
O desafio de Kudrin
Kudrin, ministro das Finanças desde Maio de 2000, conseguiu estabilizar as finanças russas num contexto de alta dos preços dos hidrocarbonetos e da estatização ou subordinação ao Kremlin dos grupos económicos constituídos na década de 90.
A boa gestão de Kudrin permitiu a Moscovo aguentar a crise financeira de 2008 E recuperar da quebra de 7,8% do PIB em 2009, retomando um crescimento de 4% no ano seguinte.
Com credenciais e prestígio internacional suficientes para aspirar à chefia do governo Kudrin, um dos mais próximos associados de Putin, viu-se preterido a favor de Medvedev.
O imediato desafio público de Kudrin a um presidente a prazo só poderia resolver-se pelo pedido forçado de demissão com a anuência de Putin.
A partir de agora o confronto pessoal entre dois elementos da elite do poder, por sinal ambos com perfil académico e técnico diferente de outros rivais ligados aos sectores de segurança e militares, vai depender dos interesses de Putin.
Kudrin poderá ser recuperado para algum cargo da Administração Pública ou no sector das grandes empresas da órbita do estado ou acabar relegado para a oposição não-tolerada como sucedeu a Mikhail Kasionov depois de ter sido demitido da chefia do governo por Putin no início de 2004.
O interregno
No interregno de Medvedev a constituição foi imediatamente alterada em 2008 após Putin o ter nomeado sucessor no Kremlin.
Futuros mandatos presidenciais, mantendo a restrição de uma única reeleição, foram alargados de quatro para seis anos.
Medvedev não arriscou criar uma rede própria de poder durante os quatro anos que lhe couberam em sorte no Kremlin e a sua situação sempre foi bem diferente da de Putin quanto Boris Ieltsin nomeou o ex-oficial do KGB primeiro-ministro em 1999 e putativo sucessor.
O primeiro presidente da Rússia ao definir os termos da sucessão pretendia assegurar a segurança pessoal e financeira da sua família e de alguns colaboradores mais próximos, compromisso que foi respeitado por Putin até à morte de Ieltsin em 2007.
Putin, por sua vez, ao escolher Medvedev visava apenas evitar o recurso a uma revisão constitucional ao estilo de autocratas como Nursultan Nazarbaiev, chefe de Estado da ex-república soviética do Cazaquistão desde 1991, que fez aprovar uma emenda em Maio de 2007 permitindo-lhe optar pela reeleição sem quaisquer limitações de mandatos.
Como chefe do governo, Putin manteve o seu estilo abrasivo em contraste com o tom mais polido e diplomático de Medvedev que discursava repetidamente sobre a prevalência da lei num sistema político em modernização e a diversificação da economia.
Da guerra com a Geórgia em 2008 aos conflitos com a Ucrânia ou divergências com Washington, passando pela exclusão do sistema político de todos os rivais (exceptuando a presença irrelevante dos comunistas de Gennadi Ziuganov ou dos ultra-nacionalistas de Vladimir Jirinovski) as diferenças de tom entre "Batman" e "Robin", conforme os crismou um diplomata norte-americano em telegrama inspirado entretanto vindo a público, nunca chegaram, contudo, a assumir relevância.
Incertezas e turbulência
Kudrin justificou as suas críticas à estratégia de Medvedev (que tem a aprovação de Putin) argumentando, designadamente, ser errado aumentar as despesas militares, que deverão subir dos actuais 1,3% do PIB para 3% em 2014, ou adiar o processo de aumento gradual até ao final da década da idade da reforma masculina para os 62 anos e os 60 anos no caso das mulheres. Os constrangimentos da economia russa, agravados pela contracção demográfica, irão acentuar-se nos próximos anos, tendo Kudrin previsto um défice da balança de transacções correntes a partir por volta de 2014 que poderá tornar-se difícil de controlar devido às políticas de expansão da despesa pública.
O sector do gás e petróleo representa 17% do PIB e 44% das receitas do estado e preços do crude abaixo de 110 dólares por barril ameaçam instabilidade imediata numa fase em que o incremento da produção implica avultados investimentos estrangeiros.
Ao aproximar-se outro período de turbulência e incerteza mais vincada se torna a necessidade de unicidade do poder na Rússia e, por isso, Putin voltará ao Kremlin.
A unicidade do poder
O sistema de patrocínio político, que enquadra os principais sectores de actividade económica e sustenta as elites, define o putinismo.
Apesar das últimas sondagens do "Instituto Levada", a mais prestigiada instituição de estudos de opinião pública da Rússia, indicarem que 66% da população se declara insatisfeita com a orientação económica e política do país, Putin continua a apresentar taxas de aprovação superiores a 50%.
A eleição de Putin em Março é um dado adquirido por piores que sejam os resultados da "Rússia Unida" nas legislativas de Dezembro em que "o partido oficial do Kremlin" se limita a apresentar como candidatos representantes da administração pública.
O simples facto do cargo formal mais alto do estado ter de ser assumido a partir de Maio directamente pelo próprio Putin é revelador de que o regime do sucessor de Ieltsin não consegue escapar a uma personalização e centralização extremas do poder.
Presentemente, o sistema político russo não oferece oportunidades de contestação legal e é uma incógnita saber quanto tempo poderá continuar a acumular pressões sem oferecer algum tipo de escape.
Jornalista
barradas.joaocarlos@gmail.com
Assina semanalmente esta coluna à quarta-feira
Aleksei Kudrin há mais de um ano que assumia publicamente significativas divergências políticas com o presidente Dmitri Medvedev, evitando, no entanto, criticar directamente o chefe do governo.
O desafio de Kudrin
Kudrin, ministro das Finanças desde Maio de 2000, conseguiu estabilizar as finanças russas num contexto de alta dos preços dos hidrocarbonetos e da estatização ou subordinação ao Kremlin dos grupos económicos constituídos na década de 90.
A boa gestão de Kudrin permitiu a Moscovo aguentar a crise financeira de 2008 E recuperar da quebra de 7,8% do PIB em 2009, retomando um crescimento de 4% no ano seguinte.
Com credenciais e prestígio internacional suficientes para aspirar à chefia do governo Kudrin, um dos mais próximos associados de Putin, viu-se preterido a favor de Medvedev.
O imediato desafio público de Kudrin a um presidente a prazo só poderia resolver-se pelo pedido forçado de demissão com a anuência de Putin.
A partir de agora o confronto pessoal entre dois elementos da elite do poder, por sinal ambos com perfil académico e técnico diferente de outros rivais ligados aos sectores de segurança e militares, vai depender dos interesses de Putin.
Kudrin poderá ser recuperado para algum cargo da Administração Pública ou no sector das grandes empresas da órbita do estado ou acabar relegado para a oposição não-tolerada como sucedeu a Mikhail Kasionov depois de ter sido demitido da chefia do governo por Putin no início de 2004.
O interregno
No interregno de Medvedev a constituição foi imediatamente alterada em 2008 após Putin o ter nomeado sucessor no Kremlin.
Futuros mandatos presidenciais, mantendo a restrição de uma única reeleição, foram alargados de quatro para seis anos.
Medvedev não arriscou criar uma rede própria de poder durante os quatro anos que lhe couberam em sorte no Kremlin e a sua situação sempre foi bem diferente da de Putin quanto Boris Ieltsin nomeou o ex-oficial do KGB primeiro-ministro em 1999 e putativo sucessor.
O primeiro presidente da Rússia ao definir os termos da sucessão pretendia assegurar a segurança pessoal e financeira da sua família e de alguns colaboradores mais próximos, compromisso que foi respeitado por Putin até à morte de Ieltsin em 2007.
Putin, por sua vez, ao escolher Medvedev visava apenas evitar o recurso a uma revisão constitucional ao estilo de autocratas como Nursultan Nazarbaiev, chefe de Estado da ex-república soviética do Cazaquistão desde 1991, que fez aprovar uma emenda em Maio de 2007 permitindo-lhe optar pela reeleição sem quaisquer limitações de mandatos.
Como chefe do governo, Putin manteve o seu estilo abrasivo em contraste com o tom mais polido e diplomático de Medvedev que discursava repetidamente sobre a prevalência da lei num sistema político em modernização e a diversificação da economia.
Da guerra com a Geórgia em 2008 aos conflitos com a Ucrânia ou divergências com Washington, passando pela exclusão do sistema político de todos os rivais (exceptuando a presença irrelevante dos comunistas de Gennadi Ziuganov ou dos ultra-nacionalistas de Vladimir Jirinovski) as diferenças de tom entre "Batman" e "Robin", conforme os crismou um diplomata norte-americano em telegrama inspirado entretanto vindo a público, nunca chegaram, contudo, a assumir relevância.
Incertezas e turbulência
Kudrin justificou as suas críticas à estratégia de Medvedev (que tem a aprovação de Putin) argumentando, designadamente, ser errado aumentar as despesas militares, que deverão subir dos actuais 1,3% do PIB para 3% em 2014, ou adiar o processo de aumento gradual até ao final da década da idade da reforma masculina para os 62 anos e os 60 anos no caso das mulheres. Os constrangimentos da economia russa, agravados pela contracção demográfica, irão acentuar-se nos próximos anos, tendo Kudrin previsto um défice da balança de transacções correntes a partir por volta de 2014 que poderá tornar-se difícil de controlar devido às políticas de expansão da despesa pública.
O sector do gás e petróleo representa 17% do PIB e 44% das receitas do estado e preços do crude abaixo de 110 dólares por barril ameaçam instabilidade imediata numa fase em que o incremento da produção implica avultados investimentos estrangeiros.
Ao aproximar-se outro período de turbulência e incerteza mais vincada se torna a necessidade de unicidade do poder na Rússia e, por isso, Putin voltará ao Kremlin.
A unicidade do poder
O sistema de patrocínio político, que enquadra os principais sectores de actividade económica e sustenta as elites, define o putinismo.
Apesar das últimas sondagens do "Instituto Levada", a mais prestigiada instituição de estudos de opinião pública da Rússia, indicarem que 66% da população se declara insatisfeita com a orientação económica e política do país, Putin continua a apresentar taxas de aprovação superiores a 50%.
A eleição de Putin em Março é um dado adquirido por piores que sejam os resultados da "Rússia Unida" nas legislativas de Dezembro em que "o partido oficial do Kremlin" se limita a apresentar como candidatos representantes da administração pública.
O simples facto do cargo formal mais alto do estado ter de ser assumido a partir de Maio directamente pelo próprio Putin é revelador de que o regime do sucessor de Ieltsin não consegue escapar a uma personalização e centralização extremas do poder.
Presentemente, o sistema político russo não oferece oportunidades de contestação legal e é uma incógnita saber quanto tempo poderá continuar a acumular pressões sem oferecer algum tipo de escape.
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