Opinião
O número excessivo de funcionários públicos (II)
De acordo com o Relatório de Primavera da Comissão Europeia, as Despesas com o Pessoal das Administrações Públicas em Portugal pesavam, em 2005, 14.5% do PIB, contra 9.9% na Espanha e na Irlanda, 12.6% na Grécia, 10.4% na Zona Euro e 10.8% na EUR-15 e UE-
De acordo com o Relatório de Primavera da Comissão Europeia, as Despesas com o Pessoal das Administrações Públicas em Portugal pesavam, em 2005, 14.5% do PIB, contra 9.9% na Espanha e na Irlanda, 12.6% na Grécia, 10.4% na Zona Euro e 10.8% na EUR-15 e UE-25.
No entanto, no ano de entrada na então CEE, em 1986, esta mesma rubrica revelava um valor de 9.7% do PIB no nosso país – que, então, comparava com 10.3% na Espanha, 10.9% na Grécia, 11.6% na Irlanda, e 12.3% na EUR-15.
A pergunta que se impõe é, então, a seguinte: como foi possível, no espaço de 20 anos, chegar à situação actual?
Grosso modo, é possível identificar no passado dois momentos de tempo que tiveram uma influência decisiva na evolução das despesas salariais dos funcionários públicos em Portugal.
O primeiro, teve a ver com um "efeito preço", isto é, com uma elevação do nível salarial da função pública, e ocorreu entre 1989 e 1993; o segundo, teve a ver com um "efeito quantidade", isto é, com um notório aumento do número de funcionários públicos, e ocorreu entre 1996 e 2001. Estes dois efeitos são ilustrados na figura em anexo, com barras (número de funcionários públicos) e linha (Despesas com o Pessoal em % do PIB) a amarelo e laranja, respectivamente, sendo evidente no gráfico o porquê de ter apelidado estes dois efeitos desta forma (veja-se a evolução do número de funcionários públicos e das Despesas com o Pessoal nos dois períodos).
Em Outubro de 1989 entrou em vigor o chamado novo sistema remuneratório da função pública, com o objectivo de reconverter o anterior sistema, em vigor há mais de 50 anos e pretendia devolver coerência ao sistema retributivo da função pública, e dotá-lo de equidade, quer a nível interno, quer por comparação com o mercado de emprego em geral.
Resumidamente, a tabela de letras foi substituída por novas escalas indiciárias no sentido de proceder a uma reforma estrutural susceptível de comportar continuadas melhorias qualitativas e quantitativas, alcançar uma progressiva competitividade no recrutamento e manutenção dos recursos humanos ao serviço do Estado, privilegiando-se, através de um aumento do leque salarial, os grupos de pessoal técnico-superior e técnico e abrir novas perspectivas de valorização de carreira para todos os funcionários. O objectivo era melhorar a produtividade dos recursos humanos e racionalizar a sua gestão, conferindo uma atenção acrescida ao mérito, à experiência e ao desempenho na promoção e progressão das carreiras.
Resumidamente, tratava-se de uma tentativa de atrair quadros de valor para o sector público (para o que havia que competir com o sector privado) e proporcionar, desta forma, uma melhoria da produtividade e da qualidade dos serviços públicos que servisse a todos os utentes.
Tendo entrado em vigor em 1989, o novo sistema retributivo da função pública foi implementado de forma gradualista, tendo ficado completada a sua aplicação apenas em 1993. No entanto, o número de subscritores da Caixa Geral de Aposentações (reconhecidamente o melhor proxy do número de funcionários públicos) passou de 615 515 indivíduos em 1988 para 661 347 (ou um acréscimo de pouco mais de 45.8 mil funcionários, cerca de 9 mil por ano, em média).
Aqui chegados, devo referir que, de acordo com Miguel Cadilhe1, Ministro das Finanças em 1989, quando esta reforma se iniciou, ela ficou incompleta, porque as auditorias externas a serviços de variados ministérios, de molde a avaliar de forma independente e isenta (como só externamente seria possível concluir) a necessidade da sua existência, as respectivas funções e os recursos que lhes estavam afectados, acabaram por não ir adiante.
No entanto, mesmo assim, foi possível obter, de 1992 a 1995, uma redução do número de funcionários públicos (de 668 715 em 1992 para 637 749 em 1995), e entre 1993 e 1995 uma descida das Despesas com o Pessoal (de 13.4% em 1993 para 12.9% em 1995). Assim, mesmo no último ano de implementação desta reforma (1993), já foi possível uma redução do número de funcionários públicos, o que prova que, mesmo que, de algum modo, esta reestruturação tenha ficado incompleta, foi possível corrigir – e mesmo inverter – o "efeito preço" resultante do aumento das condições retributivas na função pública que se tinham feito sentir entre 1989 e 1993 e que, dada a natureza da reforma, acabaram por não ser totalmente surpreendentes.
Infelizmente, o pior estava ainda para vir: o período de 1996 a 2001 foi absolutamente catastrófico na evolução das nossas Despesas com o Pessoal, devido a um "efeito quantidade", que fez elevar o número dos funcionários públicos de 637 749 em 1995 para 771 285 em 2001, ou mais 133 536 indivíduos em termos líquidos (isto é, descontando as saídas das entradas, ou mais de 22 mil por ano, nesse período). Para percebermos o que isto significou, basta observarmos que, nos dez anos anteriores (1986-1995), o acréscimo anual de funcionários públicos se tinha situado em cerca de 11.8 mil indivíduos por ano?
É visível nas barras da figura em anexo que o período de 1998 a 2001 foi o mais dramático (o acréscimo líquido anual de funcionários públicos situou-se em mais de 29 mil indivíduos por ano!...).
Como, de 1996 a 2000, o crescimento do PIB português se situou em 4.1% ao ano (aproveitando, acima de tudo, a favorável conjuntura internacional e a realização da Expo’98), o peso das Despesas com o Pessoal no PIB passou dos já referidos 12.9% em 1995 para 13.7% em 1999; em 2000, esse número já era de 14.2% e, depois, com o abrandamento internacional e a cada vez maior visibilidade dos nossos problemas estruturais, fruto da impreparação adequada para a adesão ao projecto da moeda única europeia em 1999, a deterioração das condições da nossa economia, mais sentidas a partir de 2001 (e que ainda hoje perduram?) levou a que se tivesse atingido um máximo histórico de 14.7% em 2002.
Apesar de todos os esforços de contenção prosseguidos desde então (redução drástica da admissão de funcionários públicos, e quase congelamento dos salários nas Administrações Públicas em 2003 e 2004), o crescimento económico ínfimo (mas não surpreendente, como já referi) que Portugal tem vindo a registar, levou a que se tivesse conseguido reduzir o máximo de 2002 em apenas 0.2 pontos percentuais, para 14.5% do PIB no ano passado.
Como se sabe, o despedimento de funcionários públicos é inconstitucional – pelo que, sem sombra de dúvida, o "efeito quantidade" de 1996 a 2001 foi muitíssimo mais pernicioso do que o "efeito preço" na rubrica Despesas com o Pessoal das Administrações Públicas e é, em boa parte, o responsável pelo (ainda hoje) calamitoso défice público que enfrentamos.
E nem a justificação, muitas vezes avançada, de as admissões levadas a cabo entre 1996 e 2001 corresponderem à integração de trabalhadores em regime de avença (recibos verdes) nos quadros das Administrações Públicas pode ser levada a sério: é que esses casos não terão ultrapassado os 30 mil indivíduos – muito longe, portanto, dos valores registados entre 1996 e 2001: mais de 133 mil novos funcionários públicos em termos líquidos (ou, mais correctamente, mais de 200 mil, porque se reformaram cerca de 70 mil).
Ora, no período de 1996 a 2001 (mais propriamente, do final de 1995 ao início de 2002) já os actuais Primeiro-Ministro e Ministro das Finanças eram membros dos Governos de António Guterres – naturalmente, em funções diferentes da que hoje ocupam: José Sócrates foi Secretário de Estado e chegou a ser Ministro do Ambiente; e Teixeira dos Santos foi Secretário de Estado do Tesouro entre o final de 1995 e o final de 1999. E, portanto, tomaram parte activa no descalabro que então se verificou na admissão dos funcionários públicos? pelo que, de facto, não surpreende que a reacção do Governo à proposta das rescisões amigáveis na função pública avançada recentemente pelo Presidente do PSD tenha sido concentrar-se na possibilidade (ou não) de financiamento através do QREN (o novo Quadro Comunitário de Apoio 2007-2013). Isto é, optando por se concentrar no acessório e escusando-se a comentar o essencial: se estava ou não de acordo com a proposta.
É por isso que, como referi na primeira parte deste texto, publicada há quinze dias, tenho as maiores dúvidas de que o actual Governo PS seja capaz de resolver o problema de sobredimensionamento do "nosso" Estado. O que, olhando aos personagens que mais responsabilidades têm neste processo, e ao seu passado político recente, até que acaba por – infelizmente – nem ser surpreendente?
Oxalá estivesse enganado!
NOTA: A propósito da primeira parte deste texto, publicada há quinze dias, fui contactado por Miguel Cadilhe devido à minha referência à solução por ele próprio apresentada quanto ao número excessivo de funcionários públicos em Portugal, e que apresentei como a venda das reservas de ouro do Banco de Portugal, a parte mais mediatizada, mas não integral da solução por si proposta e que, resumidamente, assenta na criação de um braço financeiro extraordinário – o FEI, Fundo Extraordinário de Investimento – forte e autónomo para pagar a reforma do Estado, financiado quer do lado das receitas, quer do lado das despesas. Para o que aqui interessa, do lado das receitas do FEI, as soluções propostas recaem na emissão de dívida pública especial, na utilização de fundos europeus e na venda de activos (em que se inclui, então, os lucros da venda do ouro do Banco de Portugal). Aqui fica, então feita a rectificação e, para mais pormenores sobre a solução preconizada por Miguel Cadilhe, o leitor poderá consultar o já citado "O Sobrepeso do Estado em Portugal", página 62 e seguintes.
1 Ver, por exemplo, Cadilhe, Miguel, "O Sobrepeso do Estado em Portugal", FUBU Editores, Novembro 2005, páginas 54-57.