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Consensos

Quando as dificuldades apertam, é normal que se procure cerrar fileiras e congregar consciências dissonantes. Os apelos provenientes de diversos sectores da sociedade portuguesa para que os principais partidos políticos estabeleçam consensos sobre as gran

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Quando as dificuldades apertam, é normal que se procure cerrar fileiras e congregar consciências dissonantes. Os apelos provenientes de diversos sectores da sociedade portuguesa para que os principais partidos políticos estabeleçam consensos sobre as grandes questões nacionais são certamente bem-intencionados e traduzem uma saudável ânsia regeneradora.

Os agentes económicos, como a sociedade em geral, anseiam por mudanças sistémicas, mas valorizam acima de tudo a previsibilidade e a constância, torcendo o nariz às inflexões provocadas pela alternância política e pelas conveniências eleitorais. Assim, no mar de incertezas e de incoerências que nos banha, os "pactos de regime" transformaram-se no último fenómeno da moda lisboeta.

Clama-se por consensos nas finanças, na administração pública, no ordenamento do território, na justiça, na educação, na ciência, na saúde, no ambiente, na defesa e na segurança, como se eles fossem possíveis, ou mesmo desejáveis, para lá dos domínios orçamental e financeiro. A lógica da democracia é a da alternância e seria, no mínimo, suspeito que ela se fizesse unicamente sentir nos emblemas dos detentores de cargos públicos. Ou será que, a bem da "eficiência" do sistema, se admite trocar a classe política por uma equipa da McKinsey sujeita a um caderno de encargos genérico e fiscalizada por uma comissão "independente" de notáveis?

Se o Governo e a oposição souberem descer das suas tamancas, poderá surgir um espaço de convergência no tocante às regras de funcionamento financeiro do Estado. Aqui sim, seria desejável que se estabelecessem consensos em torno da revisão do Programa de Estabilidade Crescimento (PEC), flexibilizando-o de modo a libertar os Estados-membros, sobretudo os mais carenciados em infra-estruturas ou os especialmente atingidos por conjunturas desfavoráveis, dos critérios rígidos e pouco inteligentes de cálculo dos défices públicos.

Seria desejável, como sustentam muitos economistas, que a União Europeia consagrasse um conjunto de regras de geometria variável onde o binómio défice orçamental-dívida pública fosse a base de um sistema comum de disciplina financeira, transparente e amigo das políticas de progresso (no desenvolvimento de infra-estruturas, nos estímulos à inovação, na qualificação humana, na capacidade empreendedora, no desenvolvimento sustentado de factores dinâmicos de competitividade).

Seria desejável que as contas públicas reflectissem, de modo cristalino, a totalidade do universo do Estado e que adoptassem o sistema contabilístico das partidas dobradas, substituindo a actual lógica de mercearia. Seria desejável que os exercícios orçamentais tivessem um horizonte plurianual e que as normas travão atravessassem incólumes as sucessivas legislaturas. Prevalecerá o realismo e o sentido de interesse nacional ou assistiremos a mais uma ópera bufa, com um libreto puramente ditado pela agenda política e pelo calendário eleitoral?

Nas restantes esferas da actividade governativa, a bola não pode deixar de estar do lado da maioria parlamentar. Não adiantará de muito procurar consensos no domínio da Administração Pública porque a complexidade e extensão da reforma - a reforma das reformas, como há muito tempo venho afirmando – inviabilizam qualquer esforço de convergência. Depois de muito tempo perdido, as medidas "laborais" que o Governo acaba de fazer aprovar, designadamente a figura do contrato individual e a avaliação de desempenho dos funcionários públicos, são um ingrediente útil e positivo no caminho da modernização das regras de trabalho na função pública. Mas que ninguém se iluda - este pacote não é mais do que o primeiro tijolo, um tijolo de catálogo, no árduo caminho para a construção de um edifício estatal ao serviço dos cidadãos e dos agentes económicos.

Nesta matéria, não vislumbro outros entendimentos que não o da assimilação tácita de práticas de melhoria incremental. O desígnio, a visão e o empenhamento político num programa de transformação radical da máquina pública, ficarão obrigatoriamente dependentes das diferentes hierarquias de prioridades da política partidária. A diferença far-se-á pelos dirigentes.

Na educação, na saúde e na segurança, as três funções governativas centrais, as experiências disruptivas não são recomendáveis, é certo. Mas ninguém espere alcançar estados de harmonia inter-partidária quando a prática continuada da política portuguesa se tem pautado pela teoria da terra queimada, descontínua e inimiga do interesse público. No ambiente, na ciência e na organização do território, factores essenciais de competitividade nacional, as opções políticas e as práticas verificadas dispensam quaisquer adjectivos e dissipam todas as dúvidas - não haverá consensos. Saibamos viver com a diferença.

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