Opinião
Analistas transformados em epidemiologistas
Os mercados descontaram de uma forma abrupta aquilo que a economia e as empresas sofrerão nos próximos tempos.
"Habitualmente dançamos sós
Vive-se e fica-se só
Frequentemente vivemos tão sós"
GNR (Grupo Novo Rock)
Solidão. Solidão de um povo, do mundo. Juntos mas sós, como se palavras que fossem impossíveis de coexistir ganhassem agora espaço para fazerem sentido juntas. Há uma tristeza colectiva que comove, que toca. Quem me conhece pessoalmente sabe que estou sempre com um sorriso nos lábios e nos olhos. E dou por mim, dias a fio, sisudo, triste e preocupado. Estranho mundo este em que sofremos juntos, sozinhos em nossas casas. Como canta Rui Reininho, "dançamos sós", mas seguramente ao som da mais triste e melancólica música. Ou, em bom rigor, dançamos ao som de um silêncio ensurdecedor.
O que é que este primeiro parágrafo teve a ver com os mercados? Nada. Mas escrever-vos semanalmente sobre números e cifrões, no meio desta tragédia humana, não tem sido fácil. Por princípio, um analista tem de tentar ser o mais frio possível, de forma que as suas análises não sejam enviesadas. É isso que tenho procurado fazer da melhor forma possível ao longo destas semanas, em que as notícias eram, primeiro, sobre os infectados, agora são sobre os mortos e daqui a uns meses serão sobre o desemprego e as falências.
A grande questão agora é saber se os mercados vão testar os mínimos efectuados no dia 23 de Março. É verdade que, dadas as fortes subidas depois desse dia em que alguns índices recuperaram 20%, muitos achariam que esse valor não viria a ser testado, mas um dos padrões habituais dos mercados em descidas abruptas é um teste a esses mínimos. Foi também por isso que, apesar de ter estado confiante na proximidade de um fundo de curto prazo antes de ele acontecer, também fui deixando claro que não tinha a certeza se seria o fundo de longo prazo. Continuo sem essas mesmas certezas. E cada vez com mais dúvidas.
Os mercados demoraram a perceber que o vírus não afectaria apenas a China. Mas quando perceberam que ele estava no resto do mundo e que teria consequências devastadoras, tiveram das maiores quedas da História. Uns falarão de pânico, mas eu acrescentaria que os mercados descontaram de uma forma abrupta aquilo que a economia e as empresas sofrerão nos próximos tempos. Descontaram demais ou de menos? Essa é a grande questão. A resposta a ela estará dependente de como vai ser o regresso à "normalidade".
Muito se discute sobre o pico, planalto ou como lhe queira chamar, na curva mais famosa da História. Mas poucos têm respostas claras sobre o que acontecerá depois disso. Fala-se no levantamento progressivo das medidas de confinamento, tentando que a sociedade e a economia retornem lentamente, sob pena de se estragar tudo o que se conquistou em termos de saúde pública. Mas daqui a quanto tempo poderemos ter uma vida normal? Daqui a quanto tempo abrirão os restaurantes? Daqui a quanto tempo recomeçarão os espectáculos desportivos e culturais? Daqui a quanto tempo os aviões voltarão a estar cheios? Destas respostas, dependerá a duração desta crise económica brutal que se seguirá. Por exemplo, em Portugal, o Governo estabeleceu como prioridade "aguentar" as empresas durante três meses, mas se reabrirem com pouca procura, muitas terão mesmo de fechar portas. Infelizmente, neste momento, nenhum país do mundo voltou à vida normal como a conhecíamos antes, nem mesmo os países orientais. Por isso, tantos olhos voltaram a estar postos em Wuhan, de novo.
Se voltarmos a testar os mínimos, será muito curioso observar aí o comportamento dos mercados. No momento em que os atingimos, no dia 23 de Março, o medo estava no seu auge. Mas se houver novo teste, será mais a razão a comandar do que o medo, e a reacção das bolsas, caso aconteça esse momento, poderá dizer muito do que se poderá passar nos mercados nos próximos tempos.
Apesar de acreditar que os mercados continuarão muito voláteis, a louca volatilidade que se viveu nas últimas semanas, tenderá a baixar. Dias como, por exemplo, aconteceu na bolsa portuguesa, que esteve a subir 8% e fechou quase a zero, tenderão a ser cada vez mais raros.
Muitos têm-me perguntado se é uma boa altura para entrar no mercado. Eu continuo a achar que o melhor é ficar de fora a ver. Um dia, o mercado dará sinais claros; entrar agora nesta volatilidade louca é correr riscos que considero desnecessários. Creio que, na próxima fase, o mercado começará a seleccionar melhor acções que foram injustamente penalizadas e outras que ainda não sofreram aquilo que se justificava. Nesta primeira fase, a enxurrada levou tudo à frente, sem clemência, mas o mercado tenderá a ser mais selectivo no futuro.
Por agora, continuo de fora a assistir a alguns dos tempos mais loucos dos quase 30 anos que levo a negociar em bolsa. Um período em que os analistas passam mais tempo a falar com médicos do que com os gestores das empresas, em que dedicam mais tempo a estudar as curvas epidemiológicas do que as contas das empresas. Estranho mundo este em que dançamos sós.
(comente aqui o artigo de Ulisses Pereira)
Artigo escrito em 03/04/20 às 12h30
Fontes: https://live.euronext.com/pt/
https://www.nyse.com/index
Ulisses Pereira não detém qualquer dos ativos analisados. Deve ser consultado o disclaimer integral aqui,onde também pode ser consultada a lista com as anteriores análises de Ulisses Pereira.
Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico
Vive-se e fica-se só
Frequentemente vivemos tão sós"
GNR (Grupo Novo Rock)
Solidão. Solidão de um povo, do mundo. Juntos mas sós, como se palavras que fossem impossíveis de coexistir ganhassem agora espaço para fazerem sentido juntas. Há uma tristeza colectiva que comove, que toca. Quem me conhece pessoalmente sabe que estou sempre com um sorriso nos lábios e nos olhos. E dou por mim, dias a fio, sisudo, triste e preocupado. Estranho mundo este em que sofremos juntos, sozinhos em nossas casas. Como canta Rui Reininho, "dançamos sós", mas seguramente ao som da mais triste e melancólica música. Ou, em bom rigor, dançamos ao som de um silêncio ensurdecedor.
A grande questão agora é saber se os mercados vão testar os mínimos efectuados no dia 23 de Março. É verdade que, dadas as fortes subidas depois desse dia em que alguns índices recuperaram 20%, muitos achariam que esse valor não viria a ser testado, mas um dos padrões habituais dos mercados em descidas abruptas é um teste a esses mínimos. Foi também por isso que, apesar de ter estado confiante na proximidade de um fundo de curto prazo antes de ele acontecer, também fui deixando claro que não tinha a certeza se seria o fundo de longo prazo. Continuo sem essas mesmas certezas. E cada vez com mais dúvidas.
Os mercados demoraram a perceber que o vírus não afectaria apenas a China. Mas quando perceberam que ele estava no resto do mundo e que teria consequências devastadoras, tiveram das maiores quedas da História. Uns falarão de pânico, mas eu acrescentaria que os mercados descontaram de uma forma abrupta aquilo que a economia e as empresas sofrerão nos próximos tempos. Descontaram demais ou de menos? Essa é a grande questão. A resposta a ela estará dependente de como vai ser o regresso à "normalidade".
Muito se discute sobre o pico, planalto ou como lhe queira chamar, na curva mais famosa da História. Mas poucos têm respostas claras sobre o que acontecerá depois disso. Fala-se no levantamento progressivo das medidas de confinamento, tentando que a sociedade e a economia retornem lentamente, sob pena de se estragar tudo o que se conquistou em termos de saúde pública. Mas daqui a quanto tempo poderemos ter uma vida normal? Daqui a quanto tempo abrirão os restaurantes? Daqui a quanto tempo recomeçarão os espectáculos desportivos e culturais? Daqui a quanto tempo os aviões voltarão a estar cheios? Destas respostas, dependerá a duração desta crise económica brutal que se seguirá. Por exemplo, em Portugal, o Governo estabeleceu como prioridade "aguentar" as empresas durante três meses, mas se reabrirem com pouca procura, muitas terão mesmo de fechar portas. Infelizmente, neste momento, nenhum país do mundo voltou à vida normal como a conhecíamos antes, nem mesmo os países orientais. Por isso, tantos olhos voltaram a estar postos em Wuhan, de novo.
Se voltarmos a testar os mínimos, será muito curioso observar aí o comportamento dos mercados. No momento em que os atingimos, no dia 23 de Março, o medo estava no seu auge. Mas se houver novo teste, será mais a razão a comandar do que o medo, e a reacção das bolsas, caso aconteça esse momento, poderá dizer muito do que se poderá passar nos mercados nos próximos tempos.
Apesar de acreditar que os mercados continuarão muito voláteis, a louca volatilidade que se viveu nas últimas semanas, tenderá a baixar. Dias como, por exemplo, aconteceu na bolsa portuguesa, que esteve a subir 8% e fechou quase a zero, tenderão a ser cada vez mais raros.
Muitos têm-me perguntado se é uma boa altura para entrar no mercado. Eu continuo a achar que o melhor é ficar de fora a ver. Um dia, o mercado dará sinais claros; entrar agora nesta volatilidade louca é correr riscos que considero desnecessários. Creio que, na próxima fase, o mercado começará a seleccionar melhor acções que foram injustamente penalizadas e outras que ainda não sofreram aquilo que se justificava. Nesta primeira fase, a enxurrada levou tudo à frente, sem clemência, mas o mercado tenderá a ser mais selectivo no futuro.
Por agora, continuo de fora a assistir a alguns dos tempos mais loucos dos quase 30 anos que levo a negociar em bolsa. Um período em que os analistas passam mais tempo a falar com médicos do que com os gestores das empresas, em que dedicam mais tempo a estudar as curvas epidemiológicas do que as contas das empresas. Estranho mundo este em que dançamos sós.
(comente aqui o artigo de Ulisses Pereira)
Artigo escrito em 03/04/20 às 12h30
Fontes: https://live.euronext.com/pt/
https://www.nyse.com/index
Ulisses Pereira não detém qualquer dos ativos analisados. Deve ser consultado o disclaimer integral aqui,onde também pode ser consultada a lista com as anteriores análises de Ulisses Pereira.
Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico
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