Opinião
Sobre o financiamento da cultura
Na semana passada, foi divulgada uma "Carta Aberta da Cultura a António Costa". O documento critica a inexplicável omissão da cultura no Plano de Recuperação e Resiliência
"Os factos são o inimigo da verdade"
Miguel de Cervantes
Sobre o financiamento da cultura
Na semana passada, foi divulgada uma "Carta Aberta da Cultura a António Costa". O documento critica a inexplicável omissão da cultura no Plano de Recuperação e Resiliência e sublinha, com razão, que "numa época em que a coesão democrática é um tema de preocupação transversal, parece um erro grave que o nosso Governo opte por não investir no futuro de um sector tão fundamental para essa coesão". Mais, os subscritores afirmam, também com razão, que a não existência de qualquer proposta relativa ao investimento na cultura no PRR terá a médio prazo consequências económicas, sociais e políticas.
O Ministério dos Impostos, conhecido vulgarmente por Ministério das Finanças, nunca quer prescindir da colecta. É medieval no pensamento, mas moderno na tecnologia de extorsão - um paradoxo muito produtivo para o Estado e para todos os governos, sem excepção, que protegem a máquina que abana os bolsos de cidadãos e empresas. Eu não defendo a diminuição dos subsídios, defendo que o financiamento à cultura seja mais diversificado. Nunca vai ser um processo rápido, mas o Estado também não é rápido neste sector cultural. Por isso, quanto mais cedo começar a ser possível diversificar financiamentos, melhor.
Enquanto os subscritores do documento se virarem só para o Governo, em vez de exigirem mais fontes de financiamento, nunca vamos sair da cepa torta nesta matéria. Como a eurodeputada Maria da Graça Carvalho afirmou num recente artigo, a União Europeia "integrou os sectores cultural e criativo numa lista de ecossistemas industriais prioritários para a recuperação económica." Recorda ainda que, por isso, o primeiro-ministro "não deve agora vir invocar supostos condicionalismos decorrentes da ligação obrigatória dos planos de recuperação aos pilares das transições verde e digital". E culmina com uma evidência, que se aplica também à reacção de António Costa ao abaixo-assinado já referido: "Para passar por bom aluno, é preciso revelar melhor conhecimento da matéria dada."
Semanada
Mais de 80% dos portugueses desejam que Marcelo Rebelo de Sousa seja mais exigente com o Governo, revela uma sondagem do Correio da Manhã. E mais de dois terços considera que o PR foi demasiado benevolente com o Executivo nos meses que antecederam as eleições presidenciais n um novo estudo indica que mais de três quartos dos portugueses estão pessimistas quanto à evolução económica, pelo que grandes decisões como mudar de emprego, casar, ter filhos, comprar casa ou carro estão fora dos seus planos para 2021 n uma sondagem da Aximage indica que, no actual confinamento, o trabalho presencial está a superar o teletrabalho, nomeadamente fora da Área Metropolitana de Lisboa n uma equipa da Universidade de Coimbra fez um estudo, indicando que 14% dos adolescentes, com idades compreendidas entre os 13 e os 16 anos, apresentam "sintomatologia depressiva elevada" devido à pandemia, com as raparigas a apresentarem valores mais elevados que os rapazes n existem actualmente mais 104 mil pessoas no desemprego do que há um ano n a DECO recebeu 30.100 pedidos de ajuda em 2020 por parte de famílias sobreendividadas n há mais de 1,3 milhões de portugueses ligados a plataformas de ensino à distância n os agentes e militares que fazem a triagem das chamadas de emergência do 112 não auferem gratificação desde setembro, sendo que o INEM transferiu dinheiro para a PSP e para a GNR em dezembro, mas os agentes ainda não o receberam n no Plano de Recuperação e Resiliência, cerca de 70% do dinheiro da bazuka vai para o Estado e 30% para o sector privado.
Dixit
"A melhor forma de capitalizar é não retirar imposto das empresas que têm resultados e reinvestem"
Carlos Moreira da Silva, num debate sobre o Plano de Recuperação e Resiliência.
Revisitar o passado
Temos um problema em olhar para o passado, um trauma que se mantém quase meio século depois de 1974. Olhamos raramente para a nossa História do século XX e, as mais das vezes, mal. Felizmente não é isso que acontece com "Projectos Editoriais e Propaganda - Imagens e Contra-Imagens no Estado Novo", uma edição do Instituto de Ciências Sociais, coordenada por Filomena Serra, Paula André e Sofia Leal Rodrigues. O livro aborda "projectos editoriais" do período entre 1934 e 1974, entendidos quer enquanto materiais impressos, com abundante documentação fotográfica sobre livros, catálogos, guias de viagem, álbuns ou fotolivros. Além disso, mostra revistas como a Panorama, ou a produção documental de divulgação das várias exposições que o anterior regime promoveu. Logo no texto inicial dá-se conta da enormidade do que está em causa: entre 1934 e 1947, segundo o Catálogo Geral das Edições do Secretariado Nacional de Informação, dirigido por António Ferro, foram publicados 1.355 títulos de diversas áreas. Os autores sublinham que "os projectos editoriais são pensados enquanto objectos de mediação entre o poder político e o campo cultural e enquanto propaganda política e arte, pois os seus autores - fotógrafos, pintores, poetas, realizadores, produtores e designers - criam discursos imagéticos próprios, a fim de responderem a objectivos comunicacionais de massas, estabelecerem relações e estratégias conceptuais e gráficas, produzirem diferentes suportes e novas formas de editar, publicar e circular pelo público. E, finalmente, esta obra aborda não só os projectos editoriais da propaganda visual do regime como em oposição a ele, depois da Segunda Guerra Mundial, aquilo a que os autores chamam "contra-imagens". Disponível em boas livrarias que estejam abertas e na Wook.
O processo criativo
Ana Vidigal (na imagem), Alice Geirinhas, António Olaio, Cristina Ataíde, Rita Barros, Inês Almeida, António Faria e Manuel Botelho são alguns dos 25 artistas que já enviaram vídeos feitos pelos próprios, e que vão entrando em exibição nas redes sociais do Museu Nacional de Arte Contemporânea. Emília Ferreira, directora do Museu, solicitou a cerca de 130 artistas visuais que criassem pequenos vídeos sobre o seu processo de trabalho, para que fossem mostrados ao público, através do Facebook e Instagram do MNAC, durante estes tempos de confinamento. O desafio era o envio de vídeos feitos com o telemóvel, com o máximo de três minutos. Dos contactados, uma centena respondeu afirmativamente, mais de duas dezenas já enviaram os seus vídeos, que vão sendo publicados no Facebook e no Youtube, em visualização acessível ao público desde o início de Fevereiro. Dada a adesão, admite Emília Ferreira, é provável que a publicação continue para além do confinamento. O Facebook do MNAC é particularmente bem conseguido e, além destes vídeos, há uma bela série intitulada "Histórias do Bairro", na qual são recordadas lojas históricas da zona onde o museu está instalado, entre elas algumas das primeiras galerias de arte que nasceram em Lisboa na primeira metade do século passado. https://www.facebook.com/museunacionaldeartecontemporanea
Um grupo de quatro dezenas de personalidades, entre elas professores universitários da área da comunicação, subscreveram uma carta aberta, na qual, em nome da democracia, apelam à ingerência nos critérios editoriais dos noticiários de televisão.
Arrebatador
Um dos discos que neste confinamento mais me sobressaltaram foi "For The First Time", dos britânicos "Black Country New Road". Trata-se de um septeto, cheio de talentos instrumentais e de uma voz que cria palavras e as interpreta como é raro alguém conseguir - Isaac Wood. Não é fácil catalogar esta música, que tem tantas influências culturais e vai beber inspiração a tantas fontes. Mas uma coisa é certa, entre o saxofone, as guitarras, as teclas, a percussão e tudo o resto, passa uma autenticidade e uma energia que hoje em dia são raras. O que aqui se desenha é um novo mapa do território da música popular, é uma alternativa às versões e às manobras de produção. Há aqui um lado libertino que envolve a criação musical do grupo. A forma como Wood escreve, fala e canta contribui para este sentimento de que alguma coisa de novo está a acontecer. E o álbum, "For The First Time", nos seus 40 minutos divididos em seis longas faixas, às vezes obsessivamente envolventes, é um permanente abanão. Disponível nas plataformas de streaming, editado pela Ninja Tune.
Sopinha de inspiração oriental
Conhecida como couve-chinesa, hoje em dia começa a ser fácil encontrar nalguns supermercados a "couve pak choi", na maior parte dos casos cultivada em Espanha. No meio deste confinamento, a alternativa para variar o menu é procurar receitas que possam surpreender quem nos acompanha na clausura. Consegui isso um dia destes com uma sopa simples de fazer. A base é um caldo de galinha de boa marca, diluído em dois terços de um litro de água. Uma vez o caldo a ferver, colocam-se duas peças de "pak choi", desfeitas e cortadas grosseiramente, e deixam-se uns cinco minutos a cozer. Adiciona-se pimenta moída na altura e molho de soja de boa qualidade, assim como pedaços de gengibre fresco, cortado em lâminas finas e um pouco de óleo de sésamo. Quando a couve começa a ficar tenra, adicionam-se dois novelos de "noodles" de arroz e, logo que a massa se esteja a separar, deitam-se dois ovos a escalfar no caldo, separados um do outro para ser mais fácil de servir. Quando a clara dos ovos começar a ficar branca, opaca e consistente, pode servir duas doses para dois pratos fundos. Polvilhe com cebolinho fresco cortado fino. Está feito o jantar. Bom apetite.