Opinião
Há património para além da pedra e do papel
Nos dias que correm, parte importante, mas menosprezada, da preservação do património passa pela preservação das imagens e dos conteúdos audiovisuais.
Back to basics
A vulgaridade nasce quando a imaginação se deixa vencer pela realidade explícita.
Doris Day
Há património para além da pedra e do papel
Nos dias que correm, parte importante, mas menosprezada, da preservação do património passa pela preservação das imagens e dos conteúdos audiovisuais. Ter a memória das imagens é tão importante como ter a memória do pensamento. Património não é só pedra e papel, ao contrário do que pensa ainda hoje muita gente. Um país sem produção audiovisual relevante não existe em termos internacionais; um país que não preserva os seus arquivos de imagens está a desprezar o conhecimento de gerações futuras. Vem isto a propósito de notícias recentes sobre as dificuldades que atravessa a Cinemateca Nacional e o seu Arquivo Nacional de Imagens em Movimento (ANIM), criado há mais de 20 anos, e que é uma organização exemplar e de referência a nível internacional. Cinemateca e o ANIM têm feito um trabalho contínuo de salvaguarda do património de filmes portugueses dos mais diversos géneros e formatos, restaurando-os, digitalizando-os, preservando originais e disponibilizando para consulta os seus arquivos, programando e exibindo-os ao público na sala da Cinemateca, na rua Barata Salgueiro. A Cinemateca é apenas mais um dos casos dos efeitos da austeridade cativante de Centeno e da incapacidade de sucessivos governos em conseguir criar, na área da Cultura, modelos de funcionamento que garantam maior autonomia financeira e uma gestão mais de acordo com as exigências específicas de cada instituição. Fiquei a saber pelo Expresso da semana passada que o Ministério da Cultura entende que, em ano de eleições, não é altura de mudanças - porque o Ministério das Finanças não quer ouvir falar do assunto. Ligado a tudo isto está a falta de adequação e actualização da Lei do Mecenato, que continua pouco competitiva quando comparada com outros países - e, mais uma vez, o assunto esbarra no Ministério das Finanças. Eu, por mim, acho que ano de eleições é o ideal para discutir estas questões. Mas já se sabe que elas não dão votos, que é a única coisa que interessa a este sistema cada vez mais distante dos problemas reais do país e da sua resolução.
Semanada
• Portugal está entre os países que mais devem a fornecedores e o Ministério da Saúde é o que apresenta mais dívidas • há 50 mil pedidos de pensões pendentes e o prazo médio de resposta ultrapassa muitas vezes os seis meses • segundo o Instituto Nacional de Estatística, em 2018 a carga fiscal aumentou 6,5% em termos nominais e representou 35,4% do PIB, o valor mais alto desde 1995 • no ano passado, 3.758 cidadãos estrangeiros foram impedidos de entrar em Portugal pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e 76% eram oriundos do Brasil • o número de nepaleses em Portugal triplicou em quatro anos e já ultrapassa os 11 mil • jovens portugueses são dos que mais tarde saem da casa dos pais, quase aos 29 anos, acima da média da União Europeia • as famílias monoparentais cresceram 12% em cinco anos • o acesso a cirurgias no Serviço Nacional de Saúde piorou em 80% dos hospitais e os prazos máximos definidos por lei continuam a não ser cumpridos • um quinto dos doentes com cancro com indicação para cirurgia ultrapassaram os tempos de espera previstos • os atrasos e dificuldades na emissão do Cartão de Cidadão provocaram um aumento de 133% de reclamações de utentes no Portal da Queixa • segundo a Marktest, Cristiano Ronaldo é a figura pública mais conhecida dos portugueses e Ricardo Araújo Pereira é quem gera mais empatia.
Dixit
"Alguém sensato acredita que um Parlamento com 750 deputados, vindos de 28 países e falando 24 línguas oficiais, seja capaz de defender os direitos dos cidadãos?"
António Barreto
Jeo, a história de uma galeria
No início deste século, em 2002, abriu, no Chiado, a Galeria João Esteves de Oliveira - Trabalhos em Papel. O seu promotor era um quadro do sector financeiro que mudou de vida, passando da banca para galerista, ele que já era coleccionador. Agora decidiu pôr um ponto final na sua galeria e ali abriu esta semana a derradeira exposição, "Not For Sale", que é a mostra de uma pequena parte da sua colecção privada. A exposição decorre em todo o espaço da Galeria, na Rua Ivens 38, até ao dia 25 de Maio. Em simultâneo, foi editado o catálogo "Moderno e Contemporâneo: A Colecção de João Esteves de Oliveira", que reúne ao longo de cerca de 400 páginas reproduções das obras, enquadradas nas áreas Moderna e Contemporânea por textos de João Pinharanda. Numa nota introdutória, o galerista conta como começou a coleccionar obras de arte aos 25 anos e como desenvolveu a sua paixão com um critério maioritariamente português e sobretudo com trabalhos em papel. Ao longo das quase duas décadas de actividade, a Galeria João Esteves de Oliveira ganhou um lugar único, enaltecendo o desenho e as obras de artistas e arquitectos que ali expuseram obras inéditas e estudos de projectos. Numa separata do catálogo, que inclui também textos de vários artistas, Alexandre Pomar escreve que João Esteves de Oliveira era "o comissário seguro das suas exposições, feitas de visitas aos ateliers, relações pessoais, desafios, cumplicidades." E, mais à frente, recorda como o galerista "assegurava critério e, para os frequentadores da Rua Ivens, garantia qualidade, valor, segurança".
Sinais dos tempos
Espanha, Marrocos e França são os três maiores fornecedores de sardinha ao mercado nacional e o número actual de pescadores em Portugal é menos de metade do que existia em 2001.
Artes de maio
A ARCO Lisboa domina inevitavelmente o panorama das artes plásticas esta semana. Está na Cordoaria até Domingo e ali se pode ver a actividade de artistas portugueses e estrangeiros, muitos dos portugueses com obras inéditas e até mostrando novas direções no seu trabalho. Ao todo, são 71 galerias, 50 das quais portuguesas, as restantes de mais 16 países. Destaque para a aposta na presença de galerias africanas, seis no total, de Angola, Moçambique, África do Sul e Uganda - e vale a pena ver os trabalhos inéditos de Ângela Ferreira na Arte de Gema, de Maputo ou, também ali, os desenhos de Rodrigo Mabunda. A Fundação EDP continua a ser o mecenas principal desta edição lisboeta da ARCO e, como já aconteceu no ano passado, o MAAT fez coincidir a inauguração de um novo ciclo de exposições com a abertura da feira. As novas exposições apresentam os trabalhos dos finalistas do Prémio Novos Artistas Fundação EDP, o envolvente trabalho de Pedro Tudela na sala das Caldeiras combinando escultura com um meticuloso trabalho de sonorização, um incontornável conjunto de obras - quase se poderia dizer de intervenção - de Carla Filipe intitulado "Amanhã Não Há Arte" (na imagem) e, finalmente, "Servitudes Circuits", a instalação de Jesper Just na Galeria Oval do MAAT e que é, até à data, a mais conseguida intervenção realizada naquele espaço. Ainda em relação à mostra de Carla Filipe, vale a pena reter o jornal ali distribuído em que se apresentam uma série de informações sobre as condições em que os artistas visuais desenvolvem a sua prática. Como já aconteceu no ano passado, na LX Factory decorre a Just LX, que agrupa uma meia centena de galerias (predominantemente portuguesas, mas com uma dezena e meia de vários países) e que se apresenta como uma alternativa aos critérios de seleção da ARCO.
Bosch jazz
André Carvalho é um músico de jazz português, contrabaixista e compositor, que desde 2014 trabalha em Nova Iorque. Para o seu terceiro álbum, inspirou-se no pintor holandês Hieronymus Bosch e compôs "The Garden of Earthly Delights", que esta semana foi distribuído em Portugal. Ao lado de André Carvalho tocam neste disco, gravado em Abril de 2018 em Nova Iorque, os saxofonistas Jeremy Powell e Eitan Gofman, o trompetista Oskar Stenmark, o guitarrista André Matos e o baterista Ruben Recabarren. Nos dois discos anteriores, como líder de uma formação, André Carvalho combinava o jazz contemporâneo com referências da música portuguesa. Neste novo trabalho, Carvalho criou uma suite em vários andamentos, pensada em torno do tríptico de Bosch. Há, ao longo do disco, com um constante pano de fundo no jazz contemporâneo, um alternar entre música improvisada e música composta, e cada uma das faixas consegue viver por si, mantendo uma coerência no conjunto da obra. O disco inclui onze temas e André Carvalho destaca "The Forlorn Mill", já perto do fim do álbum, como uma das suas composições preferidas, inspirada "num dos momentos mais alucinantes do painel que representa o Inferno de Hieronymus Bosch, momento em que todas as almas pecadoras parecem dirigir-se para um moinho. Julgo que toda esta intensidade transparece neste movimento da suite, visto que há fortes influências rock, de música contemporânea e improvisada, que lhe dão esse carácter cru e áspero". Disponível em CD editado pela Outside In Music, à venda na FNAC e disponível no Spotify.
Um queijo excepcional
Eu gosto de queijos a sério. Dos que se cortam à faca em vez de se comerem (quase) à colher. Gosto deles curados, temperados. Que exalam odor e deixam nas mãos, ao cortar, um rasto da sua gordura natural. Por estes dias, tive ocasião de me deliciar com um queijo destes, quase uma raridade nos tempos que correm, dominados pela pasta mole. Um queijo sério, um queijo de ovelha curado, velho, feito como deve ser - apenas com leite cru de ovelha, sal e flor de cardo. É um queijo com uma cura mínima de 120 dias e esta raridade, com a crosta temperada com azeite virgem e colorau, é produzida em Mangualde pela Queijaria Vale da Estrela. Esta queijaria, que só usa leite de ovelha proveniente dos rebanhos que pastam na Serra da Estrela, baseia-se nas técnicas antigas e na vontade de fazer um trabalho conjunto com os pastores que asseguram a mais importante matéria prima - o leite cru das ovelhas. Talvez por se basear no saber tradicional e no respeito pela qualidade do que é utilizado, os produtos do Vale da Estrela são diferentes e, numa petisqueira roda de amigos, quando saltam as lascas do curado, as exclamações de surpresa e elogio são constantes. Além do queijo curado, a queijaria Vale da Estrela produz também um queijo não curado, mas com consistência suficiente para se comer à fatia, como deve ser, e um requeijão - além de ter doces (destaque para o mirtilo) e mel natural. Mais informações em www.valedaestrela.pt.