Opinião
A bebedeira do poder
As peripécias deste desconfinamento parecem indicar que a abertura de portas foi muito mais desleixada do que o seu fechamento.
"Por aqui prefere-se o pontapé para a frente. E que o destino resolva o problema."
Fernando Sobral
A bebedeira do poder
As peripécias deste desconfinamento parecem indicar que a abertura de portas foi muito mais desleixada do que o seu fechamento. Todas as importantes e persistentes instruções de meados de Março e do início do confinamento resultaram, porque foram claras e precisas; no desconfinamento, aconteceu o contrário - pior comunicação, instruções mais difusas, menos preparação, menos acompanhamento, decisões contraditórias, mudanças de rumo frequentes - que ainda por cima é o que pode gerar maior desconfiança e perturbação, até na actividade económica. No final de Maio, as pessoas estavam saturadas e era previsível que, a menos que tudo fosse muito salvaguardado, ocorreriam excessos. É dever de quem manda prever este tipo de coisas.
Semanada
• O número de casais em que ambos os cônjuges estão desempregados aumentou pelo terceiro mês consecutivo e atingiu em Maio os 6.722 casos, uma subida de 1.207 face ao mesmo mês do ano passado • na segunda metade de Março, verificou-se uma grande queda nas exportações, com efeitos sensíveis no défice externo do primeiro trimestre, que teve um saldo negativo de 544 milhões de euros • segundo a consultora KPMG, a pandemia covid-19 provocou uma desvalorização do plantel das equipas de futebol, que para alguns clubes do top 32 europeu ultrapassa os 20% e que, no casos do Benfica e do FC Porto, supera os 15% • o PAN, que foi um dos triunfadores das mais recentes legislativas, atravessa uma intensa polémica interna com acusações de que há colaboradores pagos a falsos recibos verdes, que existem assessores parlamentares dos deputados pagos pela Câmara de Lisboa e que as contas partidárias levantam suspeitas • segundo o INE, existiam, no final do ano passado, 10.295.909 residentes em território nacional, Lisboa mantém-se como o concelho mais populoso do país, com cerca de 510 mil habitantes. Sintra, com 391 mil, é o segundo maior e Vila Nova de Gaia o terceiro, com 300 mil, enquanto o Porto, com 217 mil habitantes, ocupa a quarta posição • as reservas de autocaravanas para os meses de Verão aumentaram 50%, na sequência da procura de soluções alternativas para férias no contexto da pandemia.
Dixit
"Se eu estivesse a escrever o romance da pandemia - Deus me livre e guarde! - garanto-vos que às tantas metia o Medina a dizer isto: ‘Ó António! Olhe que os infectados não são meus!’"
Ana Cristina Leonardo, no Facebook
O poder do desenho
Quando se descem os degraus da Galeria Miguel Nabinho e se chega à sala de exposições, o que se vê é um conjunto de desenhos que autenticamente se desenrolam por três das suas paredes. Trata-se de "Border Line", o novo trabalho de Manuel Vieira, com praticamente sete dezenas de desenhos, relacionados entre si, mas cada um com vida autónoma. O papel pardo Kraft é a matéria-prima utilizada, assim como a tinta-da-china e, ocasionalmente, guache. Isto, claro, além da prodigiosa imaginação do artista - em que a atracção pelo fantástico é dominante. A maior parte dos desenhos nasceu no início deste ano e a série ficou finalizada uma semana antes do confinamento - embora alguns tivessem sido criados em 2017. O traço rigoroso, um trabalho manual de dimensão apreciável, a miscelânea de personagens, os temas que vão dos pesadelos do amor até viagens imaginárias e tentações variadas, criam na obra, como está exposta, um conceito de narrativa, quase uma banda desenhada gigante. A peça destina-se, no entanto, também, a ser vista isoladamente - cada desenho pode ser vendido separadamente, e isso introduz uma perspectiva de efémero nesta exposição - onde se sabe que o conjunto será disperso, percebendo que cada desenho acaba por contar a sua própria história. No texto da exposição, Manuel Vieira escreve: "A Arte é a última fronteira e faz-se o que se pode, com o material que se tem." Não podia ter mais razão. A Galeria Miguel Nabinho fica na Rua Tenente Ferreira Durão 18-B, está aberta de terça a sábado à tarde (entre as 14h00 e as 19h45).
ODE a Nova Iorque
Delmore Schwartz, um dos escritores norte-americanos injustamente pouco conhecidos, escreveu "Nos Sonhos Começam As Responsabilidades" em 1935, e esta colecção de "short stories" é considerada a sua obra maior, uma ode a Nova Iorque. Na Universidade de Siracusa, onde dava aulas, teve Lou Reed como aluno, que sublinha que Delmore foi a sua inspiração para escrever, não lhe poupando elogios no prefácio que escreveu. Delmore morreu ignorado e na miséria em 1966, e este livro foi publicado em português pela primeira vez em 2012. Nascido em Brooklyn, Delmore Schwartz foi, acima de tudo, um retratista de Nova Iorque e dos jovens heróis à descoberta do mundo. Com 21 anos, escreveu este "Nos Sonhos Começam as Responsabilidades", e mais tarde viria a imortalizar o seu nome como um expoente literário da geração que cresceu entre a Depressão e o começo da II Guerra Mundial. Nestes oito contos, a realidade e a ficção misturam-se e, tal como o autor, também o protagonista da história é um jovem de 21 anos. Editado pela Guerra & Paz.
Curiosidades doces
Segundo a Marktest, mais de cinco milhões de pessoas dizem ter consumido tabletes de chocolate no último ano, o que representa 59,5% da população, sendo que o consumo é maior junto das mulheres. E o consumo de chocolate preto ultrapassa já o do chocolate de leite.
O poder da palavra
Em 79 anos, já gravou 39 álbuns de originais. Chama-se Bob Dylan e a sua designação como Nobel da Literatura provocou polémica e levantou tempestades. Ouvindo as palavras que usa neste disco, talvez os críticos possam entender melhor a razão de ser da distinção que recebeu. Este é um disco mais falado e escrito que os anteriores - "Rough And Rowdy Ways", lançado há dias, é o seu primeiro álbum de originais em vários anos, o primeiro depois de lhe ter sido atribuído o Nobel. Antes deste novo trabalho, andara no cancioneiro americano clássico, Sinatra incluído. Críticos de diversas proveniências já decretaram "Rough And Rowdy Ways" o seu melhor trabalho desde há muito tempo. É certamente aquele que transporta mais ideias, que afirma mais convicções, sobretudo aquele em que Dylan descreve melhor a forma como vê o que hoje se passa nos Estados Unidos. Não deixa de ser curioso que a primeira faixa do disco a ser divulgada, há uns meses, em pleno confinamento, tenha sido "Murder Must Foul", um épico de 17 minutos que revive os tempos do assassinato do Presidente Kennedy e salienta as lutas contra a injustiça que constituem a espinha dorsal da História da América. Ao ouvir o disco, muitos criticarão a voz de Dylan, que em muitos pontos fala mais que canta, não muito longe do derradeiro registo de Leonard Cohen. Mas esta maneira de interpretar a sua música dá ainda mais força às suas palavras, coloca as ideias em primeiro plano. E, como sempre, o significado e as intenções de muitas das suas letras provocarão grandes discussões sobre todas as interpretações possíveis. Duplo CD, disponível no Spotify - dez canções, uma hora e dez de grande música. Imperdível.
Uma iguaria servida fria
Escolher rosbife num restaurante é muitas vezes uma aposta arriscada. Há um sem-número de razões para isso: a mais frequente é que a carne não é boa; depois vem o tempero e a confecção - um rosbife fora do ponto e semi-cozido, em vez de mal passado, é fora-de-jogo completo! E finalmente o corte - um corte grosso e irregular arrisca-se a estragar boa carne bem confeccionada - e já nem falo dos cómicos que perguntam se queremos o rosbife aquecido com molho quente por cima para estragar ainda mais. Por isso, há tão poucos sítios onde se possa pedir rosbife à vontade. Nestes dias que começam a ficar quentes, apesar da nossa proverbial ventania de fim de tarde, umas fatias de rosbife frio, de boa carne, bem cozinhado e bem cortado, sabem muito bem. Como eu cada vez gosto menos de experiências mal-sucedidas e de surpresas desagradáveis, vou cada vez menos a restaurantes, escolhendo preferencialmente aqueles onde sei que não me desiludem o palato e onde sou bem atendido. Para eu ser fiel a um restaurante, o mesmo tem de ser fiel aos clientes e manter a constância da qualidade. De entre os restaurantes que mais frequento, destaco hoje aquele que tem o melhor rosbife - o Salsa & Coentros, em Alvalade. Na lista, o rosbife aparece com uma anotação - "iguaria servida fria". E de facto é uma iguaria - acompanhado por batatas fritas às rodelas feitas na hora, a partir de boa matéria-prima, servido com molho béarnaise e/ou mostarda de Dijon, este rosbife merece uma homenagem especial. Ele e José Duarte, o fundador e proprietário do Salsa & Coentros, sempre atento, sempre a controlar a boa qualidade do que aparece nas mesas - dos vinhos da semana aos pratos tradicionais, até às sugestões do dia. Fica na Rua Coronel Marques Leitão, 12, junto à Avenida da Igreja, telefone 218 410 990