Opinião
O fatal défice democrático
A votação na Catalunha demonstrou de forma inequívoca a determinação da maioria das forças políticas em imporem um referendo sobre o estatuto e autodeterminação.
A solidez do voto conservador na Alemanha e a subordinação dos sociais-democratas em Berlim à liderança de Angela Merkel tenderão, muito provavelmente, a adiar por mais alguns meses o descalabro dos actuais compromissos institucionais e políticos da União Europeia.
A manutenção de estratégias visando reduzir a dívida pública e privada na zona euro, diminuir défices orçamentais à custa de investimento estatal, contracções salariais e de consumo, com teor anti-inflacionista e implicando altos níveis de desemprego, é, por outro lado, insustentável.
Uma França lamentável
Nova vaga de ascenso da extrema-direita francesa, com Marine Le Pen (25%) a ultrapassar os 18% conseguidos pelo pai Jean-Marie na segunda volta das presidenciais de 2002 contra Jacques Chirac, atirou borda fora os socialistas como decisores credíveis no âmbito da UE numa altura em que nenhum governo dos 28 está em condições de formular e negociar políticas alternativas à linha definida por Berlim.
De François Hollande, um dos mais medíocres presidentes da Quinta República instituída em 1958, é de esperar o pior quando à esquerda e direita as ideias mobilizadoras da "Frente Nacional" definem a arena política.
No governo de Manuel Valls, o ministro da Economia Arnaud Montebourg é a deplorável versão proteccionista socialista dos clamores da direita desorientada em que uma personagem como François Sarkozy apela ao fim do actual acordo Schengen.
O antigo presidente afirma ser essencial rever Schengen para salvar "um pacto social que explodirá" se as migrações não forem restringidas de modo a garantir benefícios dos cidadãos nacionais.
Soberania exclusivista dos Estados-nação
O desfasamento entre os 18 Estados da zona euro e os demais países da UE acentuou-se conforme visto pelo forte apoio ao UKIP (29%), que reflecte tendências soberanistas nacionais numa Grã-Bretanha paradoxalmente a braços com a possível secessão da Escócia, e do "Partido Popular" de extrema-direita na Dinamarca (27%).
Esta contestação a poderes supranacionais da UE vai a par da afirmação de interesses particularistas e proteccionistas contra migrações e concorrência económica internacional que põem em causa postos de trabalho e tradições étnico-religiosas dominantes em boa parte dos Estados-nação da Europa.
A degradação económica e financeira e a periclitante retoma com escassa criação de empregos não-precários e níveis salariais médios-altos em grande número de estados agravou o nacionalismo exclusivista e proteccionista na suas manifestações de extrema-direita, extrema-esquerda e anarquizantes.
A adesão convicta a forças antidemocráticas confirmou-se na Grécia ("Syriza" 27% e "Aurora Dourada" 9%), Hungria ("Jobbik" 14%), Áustria ("Partido da Liberdade" 20%) e Holanda ("Partido da Liberdade" 13%), colocando estas extremas-direitas acima da faixa de 10%, independentemente das variações de voto em relação a recentes escrutínios legislativos e locais e reiterando o peso da extrema-esquerda helénica.
Partidos soberanistas e xenófobos anti-UE como "Verdadeiros Finlandeses" (13% depois de 19% nas legislativas de 2011) e "Congresso da Nova Direita" na Polónia liderado por Janeusz Korwin-Mikke (de 1% na votação para o parlamento em 2001 para 7%), populistas como o "Movimento Cinque Stelle" de Beppe Grillo (21% vs. os 26% obtidos na votação para a Câmara de Deputados em 2013) atraem voto de protesto sem se constituírem como alternativas de poder.
A "Alternativa para a Alemanha", centrista a favor da permanência na UE e do abandono do euro, com 7% dos votos é, por outro lado, exemplo de partido recém-constituído capaz de vir, eventualmente, a singrar, como acontece na área da esquerda radical com o "Podemos" espanhol (8%).
Gorgulho do mesmo saco
Ao contrário de votos sólidos na direita na Alemanha (CDU/CSU 35%) e a favor do "Fidesz" húngaro de Viktor Orban (51%), governos conservadores na Polónia ou Espanha obtiveram vitórias sem grande expressão.
À esquerda o "Partido Democrático" de Matteo Renzi (41%) triunfou pelas promessas ainda por cumprir e graças a uma baixa de impostos para os escalões de mais baixos rendimentos, conseguindo neutralizar a "Forza Italia" (17%) e afastar de imediato o risco de eleições antecipadas.
A derrota dos conservadores britânicos teve como único aspecto positivo para David Cameron o enfraquecimento dos parceiros de coligação democratas-liberais, enquanto em Portugal a coligação governamental levou como bónus pela desfeita eleitoral nova crise no PS.
Em Espanha, onde os vencidos socialistas enveredaram, igualmente, por uma ronda de luta pela liderança do partido, a votação na Catalunha demonstrou de forma inequívoca a determinação da maioria das forças políticas em imporem um referendo sobre o estatuto e autodeterminação.
Estancar nos 43% a abstenção em alta desde as primeiras eleições para o Parlamento Europeu (PE) em 1979 - graças sobretudo ao aumento da participação na França e Alemanha, compensando a fraca afluência nos países do Centro e Leste ou em Portugal - de pouco vale quando é notório que a maior parte do eleitorado considera que o real poder reside, ou deve residir, nos parlamentos nacionais.
Inoperância e ruptura
A discussão para repartição de altos cargos nos termos do Tratado de Lisboa, envolvendo uma disputa entre o PE e chefes de governo sobre a nomeação do líder da confederação partidária vencedora, neste caso os conservadores e democratas--cristãos do "Grupo do Partido Popular Europeuu" de Jean-Claude Juncker, dará um toque ainda mais sinistro e canhestro a processos de decisão pouco claros.
O défice democrático, eleitoral e decisório da UE, o confronto entre lógicas de interesses e nacionais e entidades supranacionais de soberania partilhada ou sem delegação representativa de poderes, como o Banco Central Europeu, chegou a um ponto em que a estrutura instituicional ameaça tornar-se inoperante.
As eleições de Maio mostraram como pressões políticas por via de ciclos económicos negativos que exacerbam tensões sociais agravadas pela concorrência internacional, migrações de mão-de-obra e favorecimento de interesses financeiros, vão acabar por obrigar a recomposições e reformas institucionais de fundo que não poderão servir a todos os estados da UE.
Jornalista
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