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O meu marido pôs-me uma pulseira eletrónica

Apita a dizer-me que o coração está a bater descompassadamente. E pergunta-me se “Estou agitada”. É claro que estou. É da indignação por se meter tão descaradamente na minha vida!

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Eainda dizem que a Justiça funciona mal. Não tinha consciência da quantidade de pessoas que andam com pulseira eletrónica, até ao momento em que o meu marido me ofereceu um relógio inteligente. Pronto, percebo que choque que uma jornalista só tenha tido consciência em 2020 de um negócio que representa biliões, e não tenha reparado nos 45 milhões de pessoas que, só em 2019, se agrilhoaram voluntariamente a um aparelho que controla os seus mais pequenos movimentos, mas o que querem, ainda estava a procurar dominar os segredos do telemóvel, e a fazer o luto pelo desaparecimento do leitor de CD no meu carro.

Assim sendo, fiquei muito comovida quando em cima da mesa do pequeno-almoço vi uma caixa cinzenta, sobriamente magnífica, e de lá de dentro tirei um relógio. Como os pais que dão bicicletas aos filhos que ainda não sabem pedalar num triciclo, também me perguntaram se queria que fosse “quitado” em conformidade com as minhas supostas necessidades. À pergunta “Queres que registe o sono?” respondi com um sim entusiasmado, finalmente alguém ia compreender como é mesmo verdade que demoro horas a adormecer; “Queres que registe a atividade durante o dia?”, é claro que sim, e sim também ao registo das calorias, ao alerta se o meu coração deixar de bater, ou bater demasiado e, evidentemente, sim às mensagens de texto, à temperatura do ar e à previsão meteorológica, que dá sempre jeito.

Mas, apesar de ter colaborado ativamente nos parâmetros da minha nova prisão nada me preparava para este segundo superego controlador, na forma de pulseira eletrónica que decorava a partir de agora o meu pulso. Como acontece com um namorado ciumento, a primeira vez que a coisa apitou e me mandou andar a pé, achei ternurento. Tão preocupado que o meu relógio estava com o perigo de uma trombose, pensei. Já lhe achei menos graça, quando as letrinhas azuis apareceram a dizer-me que estava há demasiado tempo na minha querida caminha, e que era hora de me levantar. Desculpe? Mas quem é que o senhor julga que é, não basta o galo falante que a minha mãezinha incorporou no meu disco rígido e que começa a cantar aos primeiros raios de sol que entram pelas frestas nas portadas da janela. Quando, umas horas depois, me mandou “respirar”, isso mesmo, respirar, para depois me dar indicações precisas: inspire, expire, inspire, expire, com uma bolinha que expande e contrai, não queria acreditar. Será que o meu marido me oferecera um relógio para loira burra, como a das anedotas?

Passou. Era tudo por amor aos meus pulmões, com certeza. Durante um minuto, obedientemente, olhei para o ecrã e segui as instruções, recebendo como prémio o equivalente a uma palmadinha condescendente nas costas, do género, “Parabéns! Assim vai longe!” Longe? Mas eu quero é ficar onde estou, descansadinha.

Depois vieram as comparações. Já não basta o esforço de estar à altura das minhas próprias exigências, e agora tenho de me confrontar com as “dele” – do relógio, bem entendido. Repreende-me porque andei menos do que ontem, chama-me a atenção porque ingeri mais calorias – já não se pode comer um chocolate às escondidas? –, subi menos pisos (imaginará que vivo no Empire State Building?), ou estou vergonhosamente a permitir que a massa muscular diminua – o que é que o raio da coisa tem a ver com isso? E, cereja no topo do bolo, sugere-me que entre numa competição com a restante Grande Irmandade do Relógio Inteligente, para ver quem corre mais...

Ups, já não está a gostar deste texto, apita a dizer-me que o coração está a bater descompassadamente. E pergunta-me se “Estou agitada”. É claro que estou. É da indignação por se meter tão descaradamente na minha vida!

 

Só em 2019 foram 45 milhões os humanos que voluntariamente se agrilhoaram a um aparelho que controla os seus mais pequenos movimentos.

 

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