Opinião
Enquanto nos lembram, estamos vivos
A eternidade está na memória, tenho a certeza disso. Nos neurónios que ficaram de tal maneira marcados por alguém que, a cada disparo, nos recordam dela. E é por isso que enquanto houver quem nos lembre, não morremos.
Melhor ainda, enquanto alguém agir de uma forma, ou de outra, em consequência daquilo que fomos, estamos vivos.
Como escreve Irvin D. Yalom, psicoterapeuta, no seu imperdível livro "De olhos postos no Sol", somos como uma pedra atirada a um lago que, na força do seu contacto, faz círculos concêntricos que se vão abrindo até se desfazerem de novo na placidez da superfície. O "efeito de 'rippling'", como lhe chama, leva a que alguém nos possa marcar, sem sequer a termos conhecido, através do que escreve ou diz, mas sobretudo quando tocou alguém que nos toca, numa cadeia sem fim.
Os nossos pais estão em todas as decisões que tomamos, e a sua memória volta aos trambolhões sempre que nos cruzamos com aquilo de que gostavam, ou desgostavam (ainda oiço a minha mãe a mandar-me pentear o cabelo atrás!) . Citamo-los aos nossos filhos e netos e contamos histórias, tantas histórias, que os retratam tão melhor do que as fotografias que temos na sala. Os nossos grandes amigos, os nossos irmãos e cunhados, os colegas ou chefes, que nos ajudaram a definir quem somos, e que já cá não estão, fazem-nos constantemente rir, às vezes no meio do nada, porque nos lembramos de uma frase sua que retrata na perfeição o que acabámos de presenciar. Lembramo-nos da sua bondade, quando estamos impacientes, encontramos os seus sorrisos na forma das nuvens, ouvimos os seus conselhos em momentos difíceis e estamos gratos por continuarem tão presentes dentro de nós.
Quando os recordamos em conjunto com outros para quem significaram o mesmo (ou mais) só falta surgirem ali, de carne e osso, para entrar na conversa. Estão tão vivos, que podíamos estender a mão e tocá-los.
E, no entanto, o que é que fazemos? Calamo-nos, recordamos em silêncio, temos medo de referir o seu nome alto e a bom som, enterramo-los, então sim, com medo de perturbar os outros, de nos perturbarmos a nós mesmos, com medo de até onde nos pode levar a tristeza e a saudade. Na prática, limitamo-nos a varrer para debaixo do tapete a magoa, onde se junta a tantas outras e forma um pântano de areias movediças que ameaçam engolir-nos, em lugar de batermos o tapete à janela num dia de sol, libertando-o do pó e deixando-o com as cores ainda mais vivas, como se tivesse sido tecido ontem.
Prestamos a nós mesmos um desserviço, e prestamo-lo aos que estão de luto, e que queremos tanto ajudar, mas não sabemos como. Falamos de tudo menos do filho a quem perdeu um filho, como se nunca tivesse existido, fugimos a mencionar o nome do marido à colega que ficou viúva, e não voltamos a pronunciar o nome da nossa sogra junto do nosso sogro, não vá o pobre senhor desfazer-se em lágrimas. Somos generosos, carinhosos, pacientes, convidamos para "programas", mas tememos pôr o dedo na ferida. E fazemo-lo por ingenuidade. Imaginamos magoá-los quando recordamos, mas é precisamente o contrário que acontece. Enquanto alguém fala de nós, estamos vivos e tornamo-nos eternos.
Por isso, lembra Yalom, importa viver de forma que a nossa vida tenha significado, na esperança de que quando um dia olharmos para trás nos orgulhemos de grande parte daquilo que ela foi. E aí, garante, e eu acredito, teremos um bocadinho menos medo de morrer.
Jornalista
Este artigo está em conformidade com o novo Acordo Ortográfico