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20 de Janeiro de 2021 às 11:30

“A minha especialidade é matar”

Bolsonaro declarou uma vez numa entrevista: “A minha especialidade é matar.” Ninguém pode acusar Jair Messias de esconder os seus instintos, o seu projeto de nação, a sua índole, a sua alma.

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Tânatos, o deus da morte, é filho da Noite (Nix) e neto de Caos (ou Cháos, como dizem os gregos). Segundo Freud todos temos Tânatos dentro de nós. Todos temos impulsos destrutivos, buscamos inconscientemente a morte (nossa e a dos outros). O contrário, o impulso da vida, seria Eros, a divindade do amor.

Pois Eros tomou a forma de uma mulher negra, obesa e diabética de 54 anos, no último domingo. Eros entrou-me vista adentro pela TV, incorporado em Mônica Calazans, uma enfermeira que foi a pessoa a receber a primeira dose de vacina contra covid no Brasil.

Como usava máscara, não vi o sorriso aberto de Mônica, apenas o pude intuir. Mônica sorriu com a voz, com os gestos, com a fala a vincar o seu passado e o passado dos seus antepassados. No Brasil são os negros que mais sofrem com a pandemia. Porque, como lembrou Caetano numa poesia, “São pretos de tão pobres e pobres de tão pretos”.

Bolsonaro, o nosso Tânatos tropical, pensa que é vilão importante, mas até nisto é um triste. Ele é apenas o instrumento mais recente de uma guerra entre classes sociais que remonta aos tempos da escravidão (sem falar do extermínio dos povos indígenas).

Contrariado com o aparecimento de uma vacina, Bolsonaro sumiu. Nem no Twitter apareceu. Tânatos morre de medo de Eros. Nada que simboliza vida, esperança, cooperação pode ter a ver com ele nem com os seus. Neste caso, tem razão.

Mônica disse que lutou muito para se formar enfermeira. Disse que lutou muito, até com a família, para fazer valer a sua vontade de participar como voluntária no estudo que permitiu a criação da vacina brasileira. Disse que luta muito para não esmorecer depois de um ano de pandemia. No seu trabalho já viu muitas vidas perdidas, famílias destruídas, sonhos desfeitos. Mesmo assim, Mônica não desistiu e, após ser inoculada, levantou o braço e com a mão fechada esmurrou o ar. Mônica é o “Pantera Negra” da Marvel. “Wakanda forever”, poderia estar a gritar mentalmente.

Não é uma dose de vacina que vai curar o racismo estrutural que grassa no Brasil. Mas uma vacina é isto mesmo: um simples indutor, um pormenor, um detalhe (e Deus, lembre-se, está sempre nos detalhes). Uma vacina é feita para melhorar o sistema, criar anticorpos e ajudar a eliminar o que nos mata. E o que mata mais neste momento no planeta não é um vírus e sim a negação da realidade, a teimosia, o egoísmo, a arrogância, a ignorância.

Uma mulher negra, obesa, diabética de 54 anos com tanto impulso de vida chega a ser revolucionário num país que em termos numéricos tem a 6.ª população do mundo, mas a 2.ª em mortes diretas pela covid e onde a maioria da sociedade, incentivada pelo seu líder, recusa seguir qualquer tipo de comportamento preventivo.

Bolsonaro declarou uma vez numa entrevista: “A minha especialidade é matar.” Ninguém pode acusar Jair Messias de esconder os seus instintos, o seu projeto de nação, a sua índole, a sua alma.

Bom seria um mundo cheio de Mônicas e sem Bolsonaros. Como lembra o meu Tio Olavo: “Ainda estamos muito distantes disto. Mas nunca estivemos tão próximos.”

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