Opinião
A cigarra, a formiga e o inseticida
Estamos todos no mesmo barco (furado), aqui não há ganhadores e perdedores. Todos perdemos alguma coisa. Somos todos irmãos. Afinal, a tragédia une. Ou deveria unir.
Alguns apontamentos do diário de um cronista (que vive sozinho em casa) em tempos de quarentena:
1) Nos momentos finais do filme “Impacto Profundo”, clássico do cinema desastre dos anos 90, vemos a jornalista Jenny Lerner (Téa Leoni) abraçada ao seu pai numa praia, à espera da onda de um megatsunami que está a vir para os afogar.
Eles sabem (nós, espectadores, sabemos) qual será o desfecho. Em vez de desespero, vemos um sentido abraço entre as personagens, alguma apatia e muita resignação. O desastre quando certo não desespera, acalma. Será esta a acalmia que sentimos neste exato momento ao sermos avisados da depressão financeira que vem por aí?
O luto faz-se em vários estágios. A negação é um deles. O mundo em que vivíamos acabou sem explosões nem nuvem de gafanhotos. Estava lá e agora já não está. Foi num piscar d’olhos. Nem percebemos direito.
Agora aguardamos um anunciado desastre económico, com os pés enfiados na areia, de costas para o mar. Instintivamente, fazemos de conta que nada irá acontecer connosco, só com os outros. É duvidoso que tal estratégia dará certo.
2) Ando preocupado com os millennials. Presumo que vão ser dos que mais vão sofrer após essa pandemia. Não por culpa deles, claro, não há nenhuma relação causal entre o estereótipo que temos dos millennials e os efeitos do Corona na sociedade.
Eles questionavam o modo de vida criado pelas gerações anteriores. Estavam a trabalhar para mudar o jeito que o mundo rodava. Não queriam ficar presos aos países onde nasceram, nem se sentir dependentes das empresas, nem trabalhar em locais e horários fixos, nem ter compromissos financeiros, nem adquirir bens.
O que irão fazer agora que as fronteiras voltaram? Agora que os nacionais começam a questionar ceder benesses a quem não está disposto a contribuir com impostos? Agora que as empresas começam a ponderar desfazer das suas sedes e escritórios por desnecessários, mas que assim passarão a investir em mais controle sobre quem teletrabalha?
Os millennials não fizeram um pé-de-meia. Idealistas, tinham decidido que acumular dinheiro não valia o esforço. Agora não têm uma rede para aparar a queda. O cartão Revolut não paga as contas sozinho.
Imensas profissões que eram de sonho estão em suspenso. Quando será que voltarão a ser necessários novos pilotos de avião e hospedeiras, por exemplo. Quem não quiser estudar para médico ou engenheiro ou qualquer outra profissão dita tradicional vai fazer o quê? Vão todos trabalhar como entregadores do Uber Eats?
Como se diz no Brasil, uma hora a ficha vai cair. Para breve estará o momento em que os millennials vão perceber que a pandemia é mais do que uma grande oportunidade para uma live no Instagram. Que este não é uma espécie de Rock’n Rio viral onde podemos comprar uma t-shirt a dizer “Pandemia 2020: Eu Fui!”.
Não falo nada disto a sorrir ou com prazer. Pelo contrário. Estamos todos no mesmo barco (furado), aqui não há ganhadores e perdedores. Todos perdemos alguma coisa. Somos todos irmãos. Afinal, a tragédia une. Ou deveria unir.
Como diria o meu Tio Olavo: “Na fábula da cigarra e da formiga quem ganha sempre é o inseticida”.