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Opinião
04 de Maio de 2018 às 13:00

Folha de assentos

Boa parte do descrédito da política tem a ver com a sua incapacidade de repudiar os contágios espúrios. Não é de hoje. A impunidade acumulou-se e a política acobardou-se. Não cabe à política julgar, mas cabe à política marcar fronteiras claras de decência.

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inacção. O mundo comporta-se muitas vezes seguindo a regra do "salve-se quem puder". Rasgam-se tratados, acordos, levantam-se barreiras. Fomenta-se a desconfiança e o medo, ingredientes eficazes para travar ousadia, risco, investimento, crescimento e partilha de benefícios. Há feridas ainda por sarar da globalização desenfreada, sobretudo no mundo desenvolvido. Os expansionismos desmedidos deixaram dívidas brutais e dietas que fragilizaram os mais pobres e os remediados. A recuperação das economias está a dar alguns passos, mas longe de poder sossegar-nos. A governação do euro continua incompleta e apenas preocupada com a disciplina orçamental, e a governação política da União Europeia parada. Mais do que de equilíbrios orçamentais, precisamos de confiança, de resposta política que nos garanta rumo e coesão. Sem sinais claros, saltaremos de crise em crise em intervalos cada vez mais curtos. Nem todos os que partilham a UE têm a mesma vontade, já há geometrias e velocidades variáveis, importa quebrar a paralisia e incutir ânimo. Como disse ao Público o analista britânico Paul Mason, "continuamos a um acidente de distância de uma crise grave no euro". O maior perigo é político. A inacção face aos extremismos produz medo. 

higiene. O sequestro do Estado por interesses particulares é, e sempre foi, uma das maiores ameaças ao estado de direito e à democracia. O que veio a público de alguns casos judiciais, apesar de não estarem ainda julgados, obriga a tomadas de posição. Os processos Marquês, BES e PT revelaram comportamentos graves de responsáveis políticos. Não cabe à política julgá-los, mas cabe à política reprová-los e prevenir que se repitam. Não estamos habituados a que isso aconteça. Olhando para trás, nunca se retiraram ilações políticas do que aconteceu na compra de submarinos ou no BPN, que chegou a ser considerado "a maior burla da história portuguesa". A factura que nos foi passada, só daquele banco e do seu universo, está a chegar aos 10 mil milhões de euros. Cirandaram por lá ex-ministros e secretários de Estado, conselheiros de Estado… O que aconteceu no passado não serve de justificação para silêncios presentes. Mas serve para moderar as indignações selectivas e oportunistas. A protecção do interesse público dos desmandos de alguns exige clareza na palavra. Desde logo para marcar fronteiras de higiene política e combater julgamentos populares. É importante que a Assembleia da República se interesse pela República. 

tradução. O discurso "moderno" do Presidente da República no 25 de Abril, como lhe chamou António Costa, causou problemas de interpretação. Marcelo Rebelo de Sousa ainda disse que até um jovem de 20 anos tinha percebido o que quis dizer: simplesmente, "mais vale prevenir do que remediar". Mas a verdade é que nos dias seguintes se questionava o que o Presidente quereria mesmo dizer. Marcelo costuma ser claro e directo. É um comunicador excelente e experiente. Daí que fique a dúvida: porque é que não quis ser mais claro? Não pôde? Que sabe que não saibamos? Uns dias depois, mandou dizer que se referia ao afastamento dos políticos dos eleitores, o que abriria caminho a demagogos e populistas. O argumento parece fraco, pois bastaria o aproximar das campanhas eleitorais para colocar mais os políticos nas ruas. Mas mandou dizer também que a prudência significa apoio às preocupações pouco eleitoralistas do ministro das Finanças. Um discurso prudente, portanto. Mas, com tanta tradução, ineficaz. Os grandes comunicadores também têm dias menos bons. 

coreias. Inesperado, histórico, esperançoso. O encontro dos líderes da Coreia do Norte e da Coreia do Sul criou uma expectativa pouco comum em tempos de pessimismo. A guerra da Coreia permanecia sem um ponto final. O armistício, assinado em 1953 por comandantes militares da Coreia do Norte, da China e da força da ONU liderada pelos EUA, não chegou a ser um tratado de paz entre as duas Coreias. Ficou apenas uma zona tampão desmilitarizada, mas em estado de alerta permanente, baluarte vivo da guerra fria que conduziu à divisão das Coreias. China, Japão, Rússia e EUA têm fortes interesses na região e, por isso, o gesto de aproximação de Kim Jong-un e Moon Jae-in é vital para a estabilização regional e para alguma distensão internacional. Kim provocou a comunidade internacional com a ameaça nuclear, mas foi com essa provocação que ganhou peso negocial para poder quebrar o cerco das sanções e encontrar saídas para um país isolado e em agonia económica e social. As promessas deixadas pelos dois líderes no paralelo 38 são muito ambiciosas. Desnuclearização e unificação são caminhos exigentes. Se Trump e Kim também encontrarem sintonia, há razões efectivas para esperança. 

casas. Quando se fala de habitação, somos um país de proprietários. Não porque a prosperidade abunde, mas porque é mais difícil ser arrendatário. Ou melhor, somos um país de senhorios que paga rendas eternas aos bancos. Arrendar uma casa é mais penoso do que pagar um empréstimo ao banco. Não é de hoje. É de há muitas décadas, mesmo quando as taxas de juro andavam perto dos 20%. A verdade é que nunca conseguimos criar um mercado de arrendamento. Congelaram-se rendas, alteraram-se regras e não se deu estabilidade e horizonte a quem investiu poupanças numa casa para alugar. A pressão do turismo, sobretudo em Lisboa e Porto, trouxe distorções graves à liberalização introduzida pelo anterior governo. Ficou, de novo, mais difícil encontrar casa para alugar e as que aparecem têm preços muito elevados. O problema não se resolve à custa da grande maioria dos senhorios, pequenos proprietários, mas com regulação do mercado. Os benefícios fiscais para arrendamentos duradouros são medidas positivas. Importa que os grandes proprietários (municípios e instituições de solidariedade) as complementem com a colocação no mercado de arrendamento de mais casas a preço acessível. 

fogo. Já no final das suas páginas, Nuno Camarneiro confessa: "Do alto de quem voa é tudo mais mundano, vil e pequenino. Enquanto os homens se matam pelos deuses, um Deus só veria homens que se matam por serem homens. Talvez a maior lição que tenha aprendido é que alguém que dispara olha sempre através da mira, e nunca para cima. Fossem os homens pássaros". Camarneiro tem um novo romance. Chama-se "O Fogo será a tua casa" (D. Quixote) e detém-se numa zona de guerra do Médio Oriente. O escritor junta-se a um jornalista turco e ambos são raptados por fundamentalistas islâmicos. Aprisionados num barracão, partilham histórias com outras vítimas: uma freira ortodoxa, um engenheiro holandês, um soldado americano e um suicida francês. O engenheiro Camarneiro escreve livros porque anda à procura de respostas: "Não sei se as palavras justificam a dor, mas sei que a dor é tanto do corpo como do grito". Temas e inquietações de sempre em territórios do nosso tempo. 


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