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O tempo não é coisa rara para quem desconhece o futuro

São histórias tão particulares que não se hesita em chamá-las de raríssimas. O mesmo nome da associação que dá apoio a quem carrega no corpo o que é (praticamente) desconhecido. Quanto tempo é preciso para criar certezas?

12 de Outubro de 2017 às 12:47
Sara Matos
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Foto em cima: Margarida Ventura e a filha Ana Rita, portadora de Síndrome de Leigh. Ana Rita está na Casa dos Marcos da Raríssimas há cerca de três anos, perante as dificuldades da mãe em assumir os seus cuidados sozinha.

Margarida Ventura deixou de usar relógio. "Era um suplício". Não lhe importam os minutos passados a percorrer a ponte Vasco da Gama. Quando o tempo deixa de ser tudo, há detalhes que se tornam mais fortes.

"Venho todos os dias ver a minha filha. Em três anos, posso dizer que falhei, se calhar, umas cinco vezes", conta. Ana Rita é o seu "bebé de estimação": 33 anos, 30 quilos. Uma doença de sempre e para sempre, só detectada aos seis anos, que a agarra a uma cadeira de rodas.


7
Pólos
A Raríssimas conta com sete pólos de apoio em todo o país: Moita, Lisboa, Maia, Pico, Viseu, Tavira e Madeira.


Síndrome de Leigh. O corpo produz ácido acima do normal, acumulando-se no sangue, explica esta antiga bancária de 63 anos. Outras doenças se foram juntando ao registo de Ana Rita. Está na Casa dos Marcos, na Moita, e aqui vivew. A mãe dorme do outro lado do rio Tejo, em Lisboa.

Foram demasiados os anos à procura de um sítio, de uma vaga. A busca começou ainda o marido era vivo. "Fizemos um seguro de vida, em que era ela a única beneficiária. Morreu quem não era para ter morrido". E o peso, por mais que o amor aligeire, era demasiado pesado para Margarida Ventura carregar sozinha. Na Casa dos Marcos encontrou uma mão.
Uma das salas de terapêutica desta casa, onde uma equipa médica acompanha diariamente os utentes.
Uma das salas de terapêutica desta casa, onde uma equipa médica acompanha diariamente os utentes. Sara Matos
O sonho, em forma de casa, é já pequeno para responder a todas as necessidades. "Em ambulatório temos resposta mas não é suficiente, porque nos falta o internamento", admite Andreia Bernardo, coordenadora do Centro de Desenvolvimento e Reabilitação. Neste momento, o lar só se destina a jovens com mais de 16 anos. O mais velho já passa os 40.

Faltam todos os outros, as crianças com doenças raras. "Um dos próximos projectos da Raríssimas é criar a Casa dos Marquinhos. Já temos o terreno cedido pela Câmara Municipal da Moita", alegra-se a responsável. Ali, mesmo ao lado.

O estímulo da ajuda

Passam das três da tarde quando a sessão de terapia começa. É uma síndrome de Williams "atípica" aquela que este menino de seis anos transporta nos seus passos, em pontas dos pés. Quem tem esta doença rara tende a apresentar um ligeiro atraso cognitivo e problemas de equilíbrio. Pelo contrário, a sociabilidade e o gosto pela música são acima da média.

Este menino gosta de água. Quando chega à sala snoezelen da Casa dos Marcos - equipada com diferentes aparelhos de estímulo visual, sonoro ou táctil - descalça as sapatilhas e atira-se para o colchão com água aquecida, o que permite relaxar os músculos.

Quando os equipamentos estão todos ligados, no escuro, faz lembrar uma feira popular. De acordo com os pacientes e o plano de terapia, é preciso seleccionar. "Dependendo do uso que o terapeuta dá à sala, pode ser relaxamento ou estimulação", resume a terapeuta Margarida Agostinho.
Este espaço iluminado, é a sala snoezelen da Casa dos Marcos. Aqui se desenvolvem terapêuticas com estímulos visuais, sonoros ou tácteis, a partir dos diferentes equipamentos disponíveis.
Este espaço iluminado, é a sala snoezelen da Casa dos Marcos. Aqui se desenvolvem terapêuticas com estímulos visuais, sonoros ou tácteis, a partir dos diferentes equipamentos disponíveis. Sara Matos
Das oito mil doenças raras que se estimam existir em todo o mundo, a Raríssimas já lidou com três mil através da sua linha de apoio telefónico, a Linha Rara. Há mais de uma centena de pedidos de ajuda por mês. Alguns desses casos cruzam-se, depois, na recepção desta casa.

Tal como Ana Rita se encontra agora com a mãe, voltando para os seus braços. Apesar dos apoios dos sistemas de segurança social, o seu SAMS e a ADSE do marido, Margarida Ventura paga mais de mil euros por mês para que a filha possa ter esta assistência contínua. "Fora fraldas e medicamentos. Tudo isso é à parte. Eu não ganho o que pago aqui. Com a morte do pai, consegui equilibrar", justifica.

E é na morte, nas dúvidas que ela encerra, que estão as suas maiores preocupações. "Quando sabemos as respostas, vem o raio do mundo e troca-nos as perguntas todas. Começamos outra vez do zero". Aprender tudo de novo.

Os nomes dos que fazem esta Casa dos Marcos, pelo menos, já sabe de cor. As suas histórias são também a história de Margarida Ventura. "São todos meus". Amanhã, voltará, sem pressa a cruzar a ponte. Sem hora marcada para ir e voltar. "Ela está bem. Se eu não vier, ela está bem".


Como fez mais com menos

Programa Olha por Mim envolve empresas

Desde a criação da Raríssimas em 2002 que a sua fundadora, Paula Brito e Cunha, tem procurado envolver o tecido empresarial neste projecto. Foi com o seu impulso que arrancou a construção da Casa dos Marcos, cujas portas abriram em 2014. Através do regime de mecenato, as empresas podem fazer um contributo financeiro que é convertido em tratamentos para alguns utentes da Casa dos Marcos, num programa chamado de Olha por Mim. Até ao momento, foram mais de 50 as crianças a beneficiar deste apoio. A Raríssimas pretende, deste modo, não fechar a porta à comunidade nas suas valências que não têm comparticipação pública.

Pontos fortes

Com uma equipa de 130 pessoas, a Casa dos Marcos reúne respostas sociais e de saúde a portadores de doenças raras. É prestado apoio a mais de 150 pessoas.

Uma casa feita de vontades raras

Debaixo do mesmo tecto, de corredores brancos e portas coloridas, juntam-se diferentes valências. Há a Clínica dos Marcos, o Centro de Desenvolvimento e Reabilitação e ainda campos de férias durante o Verão, que não têm comparticipação pública. Já a componente social contempla um lar com 24 camas, uma residência para utentes mais autónomos e ainda um Centro de Actividades Ocupacionais, sem uma componente profissionalizante. Há casos de utentes que são reencaminhados pela Segurança Social, contando por isso com apoio.


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