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Encostado à parede azul do corredor, de bata branca e mãos atrás das costas, Figueiredo Fernandes conversa, entre sorrisos e gargalhadas, com dois jovens igualmente vestidos a rigor. É hora de almoço e aqui, na Unidade de Saúde Familiar (USF) da Serra da Lousã, qualquer período de pausa dá azo ao convívio à porta dos gabinetes médicos.
É este espírito de equipa, aliado à organização e método de trabalho, uma das marcas mais fortes desta USF, perto de Coimbra, cuja fama já chega às faculdades e cativa jovens médicos, recém-licenciados. "Hoje começa a haver fila de espera para os internos", atesta o médico de família Figueiredo Fernandes, que trabalha há 30 anos neste centro. Questionado sobre a importância dos médicos em formação (internos) para o funcionamento da unidade, o especialista, sob o olhar ainda mais atento dos dois jovens médicos, resume: "são eles que impulsionam isto". Com um sorriso no rosto, de quem já antecipava uma resposta destas, Bruno Moreno, que está no último ano do internato, completa sem demora, encarando o especialista: "claro que somos importantes. Sem os internos, o que seria de vocês?". Minutos mais tarde, também o coordenador da USF, João Rodrigues, viria a confirmar que "sem os internos não havia USF". Neste momento, aqui na USF Serra da Lousã, há oito internos, mais os do ano comum (primeiro ano após a licenciatura).
O ambiente descontraído e divertido que se vive no corredor não difere muito daquele que se encontra ao entrar nos gabinetes médicos. Desde logo porque todos os profissionais expõem com orgulho as suas caricaturas na parede.
Doentes também têm direito a cartão-de-visita
São pormenores como este que ajudam na aproximação aos utentes. Mas não só. Numa iniciativa pouco comum, cada médico desta USF tem um cartão-de-visita, com os seus contactos de telemóvel e e-mail, que entrega aos pacientes.
A atenção com os doentes tem norteado a direcção desta unidade. Desde o balcão de atendimento, com divisórias entre as diferentes secretárias, aos gabinetes onde foram criadas condições para que os exames físicos sejam feitos aos doentes sem que os mesmos corram o risco de ser vistos por alguém que entre de repente.
Várias são as medidas que têm vindo a ser adoptadas para promover a privacidade dos pacientes, frisa João Rodrigues enquanto se encaminha para uma porta fechada: "é a única deste centro de saúde que está fechada. É a dos ficheiros clínicos", refere o médico, que aproveita para explicar a importância de se ter os dados clínicos bem protegidos.
Os cerca de 10.100 utentes são assim a figura-chave na gestão desta USF. Se por um lado são adoptadas medidas a pensar neles e por forma a melhorar ao máximo o atendimento, por outro espera-se a sua colaboração. "Para isso é preciso que conheçam os seus direitos e deveres", explica João Rodrigues, pegando num dos dossiês com informação para os utentes que estão colocados estrategicamente junto à sala de visitas, vazia.
A secretária clínica, Ana Paula Esteves, explica que as segundas e as terças são sempre os dias mais movimentados. As segundas por causa das pessoas que adoecem durante o fim-de-semana e as terças-feiras por causa do mercado. No resto dos dias, embora com uma média de 280 atendimentos por dia, não se sente confusão pois as consultas são programadas. "Os médicos são sempre extremamente pontuais", garante Ana Esteves.
Silvina Carvalho, de 73 anos, ainda se lembra de como era este centro de saúde antes de ter passado a modelo de USF, em final de 2007. "Eram bichas por todo o lado". Acabada de chegar à sala onde sabe que não vai esperar mais do que um quarto de hora, Silvina diz que para melhorar o centro só vê uma solução: "deitar tudo abaixo e construir de novo. Mas o Estado também não pode, coitado. Mas se não pode arreie. Não pode é andar sempre a tirar aos pobres".
Também Francisco Morais, de 51 anos, que entretanto chegou, não se queixa. "Se houvesse uma classificação de 0 a 100, eu dava 101", brinca o utente, que aceita de bom grado a alcunha de "pessoa de primeira", explicando logo de seguida: "há quem diga que aqui na Lousã há pessoas de primeira e outras de segunda". As de primeira são as da USF Serra da Lousã, as de segunda são os utentes da USF mais recente, que fica no piso de baixo, no rés-do-chão deste edifício. Ali ainda se espera pelas consultas e os procedimentos estão menos oleados.
A Silvina e a Francisco juntam-se muitos outros utentes satisfeitos com o serviço. De acordo com o último inquérito, 99% dos utentes indicaria esta USF a um familiar ou amigo.
"Havia vícios que perdemos"
Mas a qualidade do atendimento só se consegue assegurar com medidas que sejam sustentáveis, lembra João Rodrigues, aproveitando para lançar críticas ao governo que "só cortou salários". "Foram cortes de excel", resume.
Em relação aos restantes cortes que se têm sentido ao longo dos últimos anos, nomeadamente na redução dos pagamentos por medicamentos e meios complementares de diagnóstico, o coordenador da USF diz que "tem sido possível gerir com relativa facilidade" porque estavam "muito longe da perfeição". Uma observação que mais tarde viria a ser confirmada pela médica Joana Fernandes. "Havia vícios que perdemos. Tinha-se perdido um bocado a noção da prática clínica. Pedíamos exames por tudo e por nada", recordou a médica de família, que é também a responsável pela formação dos internos.
Satisfeito com a performance da equipa, João Rodrigues diz temer pelo que aí vem. Já estão prontas as novas instalações onde se concentrarão os centros de saúde que estão no centro da vila. Distam a dois quilómetros do centro. "Agora 85% dos utentes vêm a pé. Com a mudança apenas 15% conseguirão fazê-lo", lamenta o coordenador, que também acha que não haverá espaço para todos os serviços.