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João Lobo Antunes: "É evidente que o SNS não pode falir"

Nenhum político aceitaria o fim do Serviço Nacional de Saúde. Mas têm de se fazer escolhas. Quem o diz é o neurocirurgião Lobo Antunes, que venceu o prémio "Personalidade Saúde Sustentável".

24 de Junho de 2014 às 10:31
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Lobo Antunes recebeu-nos no ainda seu gabinete no Santa Maria, já entre caixas e caixotes. O neurocirurgião deixa no final do ano lectivo o hospital.

 

 

Toda a vida defensor da equidade no acesso à saúde, o neurocirurgião João Lobo Antunes considera que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) não está em causa, mas que é preciso fazer escolhas pois os recursos são limitados. O médico recebeu o Negócios naquele que foi o seu gabinete, durante anos, enquanto director do serviço de neurocirurgia no Hospital Santa Maria e professor da Faculdade de Medicina.


Disse, quando recebeu o Prémio Personalidade Saúde Sustentável, que o seu grande orgulho era o SNS. Disse isso como profissional ou como cidadão?
Nas duas qualidades. E também como doente. Sempre entendi quando comecei a desenvolver o serviço de neurocirurgia no Hospital Santa Maria que uma das coisas a garantir era que qualquer doente, qualquer que fosse a sua condição económica e social, fosse completamente igual. Esta necessidade de garantir a equidade era para mim um mandato moral. A minha dificuldade foi sempre poder chegar a todos. Nos últimos anos acho que conseguimos garantir que quem tinha um problema urgente e em que o tempo fizesse diferença passava à frente dos outros. Infelizmente isso deixa-nos com uma lista de espera infindável e a meu ver difícil se não impossível de combater.


Esse caminho em busca da equidade tem sofrido retrocessos?
É evidente que a actual organização do sistema e as políticas de recrutamento não permitem satisfazer as necessidades que temos. Isto é um problema que tem de ser tratado globalmente.


Na conferência da entrega dos prémios os professores Diogo de Lucena e Adalberto Campos Fernandes disseram que o SNS não é falível, mas que é preciso fazer escolhas. Concorda?
A primeira escolha que temos de fazer é aproveitar os recursos e tentar eliminar os desperdícios. É também uma escolha que obrigará provavelmente a distribuir os doentes conforme os centros de referência. É evidente que o SNS não pode falir, não é concebível, nem nenhum político aceitaria que isso acontecesse. Agora que é preciso seleccionar ofertas terapêuticas, vigiar o que se faz em termos de meios de diagnóstico e evitar repetições, isso é.


Isso vai ao encontro daquilo que já defendeu publicamente em tempos. O racionamento.
Eu não defendi o racionamento. Há uma coisa que é evidente, quando se fala em racionamento a argumentação não é racional. O que eu disse é que o racionamento surge quando há recursos mais escassos em relação à procura. Portanto não pode ser considerado como um tabu absoluto. O dar tudo a todos, ou a saúde não tem custo, ou o mais caro é melhor, tudo isso são preconceitos absurdos. Portanto, se os recursos são limitados temos de pensar a quem é que deve ser aplicado e sobretudo as razões das escolhas. Mas é um compromisso colectivo que deve envolver os profissionais, políticos, sociedade civil e doentes.


Quando chegou ao Santa Maria, vindo dos Estados Unidos, espantou-o o desperdício. Hoje já não há tanto desperdício?
Tenho procurado uma contenção. À entrada da sala de operações, por exemplo, está um cartaz onde está explicado quanto é que custa cada um dos materiais e dispositivos que vão ser utilizados. Os custos do serviço há dois e três anos tinham reduzido substancialmente.


Defende o princípio da sustentabilidade da ética e da moral. É possível ter práticas ética e economicamente sustentáveis?
São as grandes conciliações da sociedade moderna. Isso aplica-se não só à saúde mas à segurança social e à educação. A política implica necessariamente fazer escolhas e essas escolhas têm de ter um suporte moral e o suporte moral deriva essencialmente da definição de interesse público.


Acha que os políticos têm feito poucas escolhas?
Acho que o debate político do ponto de vista da defesa do interesse público tem sido muito pobre.


É possível manter o SNS tendencialmente gratuito, geral e universal?
Acho que não é possível ser doutra maneira.


A passagem da troika por Portugal fez bem à saúde?
É mais fácil perceber o que se fez em relação a custos, agora se as medidas impostas tiveram consequência na saúde dos cidadãos é absolutamente prematuro.


Há muitos anos que concilia a prática clínica no SNS com o sector privado. Muitas vezes vem à tona a discussão sobre a exclusividade dos médicos. Qual a sua opinião?
No meu serviço praticamente todos os médicos têm clínica privada, a rentabilidade do serviço é das melhores de qualquer serviço do SNS e nunca as salas de operações têm um minuto vazias. O que é que aconteceria se fosse imposta a exclusividade? O serviço seria decapitado. Iam embora. Portanto, se me conseguirem explicar como é que conseguem garantir e segurar os melhores para os serviços de especialidades eu ficaria tranquilo. Se o SNS tivesse incentivos financeiros e garantisse que os melhores continuariam a praticar no seu interior, a exclusividade seria absolutamente justificável. Mas primeiro têm de fazer um estudo. Não tenho nada contra o assunto da exclusividade mas toca-se no assunto e morre. Nunca houve um discurso coerente.


Um dos motivos pelos quais fecha esta porta do SNS é por não se sentir recompensado?
Não. Trabalhar aqui traz outras recompensas. A colegialidade, a possibilidade de discutir os casos, traçar linhas, tratar casos muito complexos que naturalmente no privado seria muito difícil. A população que nós atendemos tem características muito particulares. 

 

 

 

"Tenho uma agenda cheia"


30 anos depois, João Lobo Antunes deixa o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e a Universidade de Lisboa. Uma partida que faz com "tranquilidade", até porque continuará com "a agenda cheia".


Deixou o SNS há duas semanas, mas recebe-nos hoje no Santa Maria…Está a custar a despedida?
Recebo no Santa Maria porque a Lei permite que eu continue a ser professor de neurocirurgia até ao final do ano lectivo. Portanto continuo a ocupar muito temporariamente o gabinete que historicamente pertenceu ao professor de neurocirurgia. Além disso tenho de fazer a limpeza necessária a 30 anos de ensino. Depois na altura própria, espero que em breve, abandono este gabinete, até porque trabalhar no meio de caixas não é muito simpático e, por outro lado, os novos professores têm que ocupar este gabinete.


Qual é o sentimento neste momento?
Ainda é uma nuvem. Ainda não cheguei à fase em que estou a substituir uma coisa por outra. Portanto há uma mistura transicional que de alguma maneira não é simpática. Porque as coisas novas ainda não estão cristalizadas, não têm ainda uma forma que possa definir. Mas faz-se com tranquilidade.


Tem já outro projecto na calha?
Tenho muitas outras actividades e além do mais tenho muitas solicitações para falar em cursos e conferências. Tenho uma agenda cheia. E continuo a fazer clínica no hospital da CUF, onde fiz toda a vida.


Já recebeu vários prémios e distinções. Qual o que mais o orgulha?
É muito difícil dizer isso porque seria hierarquizar os prémios. Orgulho me deles por razões diferentes. O valor do prémio depende não só de quem o concede como daqueles que nos antecederam nos prémios. Não os pedi, não me candidatei. Mas na minha vida foram acontecendo estas coisas. 

 

 

 

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Perfil


Neurocirurgião defensor da ética


Completou 70 anos este mês e trabalhou no Hospital de Santa Maria durante 30 anos. O neurocirurgião João Lobo Antunes foi o primeiro médico a implantar o olho electrónico num invisual, em 1983. Licenciado e doutorado em Medicina pela Universidade de Lisboa, o neurocirurgião foi director do serviço de neurocirurgia do Santa Maria e sempre pautou a sua vida pela "ética e pela moral". Deu a sua última lição na Faculdade de Medicina também este mês. Tem publicados mais de uma centena de artigos científicos e alguns ensaios. Além da passagem por várias sociedades científicas, Lobo Antunes foi mandatário das candidaturas a Presidente de Sampaio e de Cavaco e desde 2006 integra o Conselho de Estado. Já recebeu vários prémios.

 

 

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