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Ir ao arquivo buscar os processos clínicos, empilhá-los num carrinho tosco e andar acima e abaixo, por vezes à chuva e ao vento, a distribuir - e depois a recolher - essas pastas verdes pelos consultórios médicos. Uma grande parte dos 31 anos de trabalho de Alexandrina Sousa no Hospital Dr. Francisco Zagalo foi passada nesta rotina pesada, repetida duas vezes ao dia para todas as consultas. Acabar com essas pilhas de processos na mesa dos médicos - que até já tinham as ferramentas e os registos informáticos - foi a primeira "bomba atómica" largada pelo projeto HOSP - Hospital de Ovar Sem Papel.
Os primeiros estilhaços atingiram os hábitos desta castiça assistente operacional, requalificada e desviada para outras tarefas, como ajudar a enfermeira na sala de pensos, preparar as marquesas, transportar materiais do laboratório ou orientar os utentes. "Agora é muito melhor. Tenho mais tempo para apoiar os doentes, que às vezes chegam aqui baralhados. "Dizer: ‘Precisa de ajuda?’. Antes não dava para fazer isso. Sinto que sou mais útil, sem dúvidas", relata Alexandrina Sousa, 65 anos.
A retirada de impressoras dos gabinetes médicos foi outra das pioneiras e arriscadas medidas deste plano, acabando ambas por ter um "impacto residual" na organização, relata o presidente do conselho diretivo, complementadas por outras "coisas simples". Foi Luís Miguel Ferreira que enviou o primeiro ofício assinado eletronicamente; os regulamentos passaram a ser produzidos, assinados e difundidos pela mesma via; e a solução de gestão documental que o hospital até já tinha, mas não utilizava, teve a licença reativada com mais horas de formação para os colaboradores.
"Inundação" sem dinheiro
Ex-assessor de Carlos Zorrinho na secretaria de Estado da Energia e Inovação e também na coordenação da Estratégia de Lisboa e do Plano Tecnológico, este licenciado em Matemática e doutorado em Sistemas de Informação entrou a 1 de setembro de 2017 para a administração de um hospital pequeno - serve cerca de 55 mil pessoas do concelho de Ovar e zonas limítrofes, como a Murtosa - "inundado de papéis" e com um problema no arquivo clínico.
"Avisaram-me logo que só havia espaço para mais dois ou três meses. Percebi que tinha de fazer alguma coisa", recorda o gestor. Falou com Henrique Martins, presidente da SPMS - Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (serve os hospitais com tecnologias de informação), que se espantou por "não [vir] pedir dinheiro, como os outros".
Após alguns dias a "partir pedra", com a "bênção" do então ministro da Saúde e em apenas um mês estava a ser lançado este projeto para a desmaterialização de registos e processos dentro do hospital, em que "a tecnologia, embora seja relevante, acaba por ser instrumental porque o que visa é uma alteração das rotinas, tentando eliminar o papel destes circuitos". Volvida a primeira fase em que não precisou de dinheiro, para "ir mais a fundo na mudança de processos" avançou com candidaturas a fundos comunitários - já está a executar uma e tem mais duas para aprovar e outra em preparação -, num investimento de 1,7 milhões de euros em ferramentas informáticas, vários aplicativos e ajuda externa para mapear os fluxos e ajudar os serviços na implementação em contexto de trabalho.
Mandamentos e liberdade
As consultoras deixam relatórios sobre o que fazer para desmaterializar determinado processo, mas depois é preciso operacionalizar. E para liderar esses dossiês há uma equipa mais restrita, com dez elementos, encabeçada pelo próprio presidente para "dar o exemplo" e composta por médicos, enfermeiros, administrativos e terapeutas. Ainda que tenha visto inicialmente "pessoas a olhar de lado para estas medidas", entre as cerca de 250 (incluindo os prestadores de serviço) que trabalham neste hospital do setor público administrativo, um dos cinco que restam no país, Luís Miguel Ferreira conta que "com o tempo vestiram a camisola".
Nisso ajudou a forte divulgação interna, que incluiu a imagem nos ‘desktops’ dos computadores e medidas menos convencionais, como os "10 mandamentos da desmaterialização", pintados em azulejos. "Não cobiçarás os papéis dos teus colegas" é um dos que mais diverte quem lê os dois painéis afixados na instituição.
Em 2018, face aos gastos nos dois anos anteriores, o hospital de Ovar consumiu menos 200 mil folhas de papel e poupou o corte de 22 árvores. A receita eletrónica disparou para 70% das prescrições, o que compara com a média nacional a rondar os 10%. Porém, para Arlete Cardoso, 46 anos, o maior entusiasmo foi ter deixado de ser "a chamada ‘rata de biblioteca’, fechada numa sala quase sem janelas". Depois de cinco anos a arquivar papel, a quebra no volume de processos libertou-a desta "atividade completamente rotineira, monótona e de desgaste físico" para o "muito mais aliciante" serviço de agendamento do bloco cirúrgico e de consultas pós-operatórias.
A figura
Rui Dias
Diretor clínico
Especialista de medicina interna há quatro décadas, há 15 anos Rui Dias trocou o Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa por esta unidade vareira, onde desde 2017 lidera uma equipa composta por cerca de 35 médicos. E foi uma figura relevante para o envolvimento destes profissionais na desmaterialização de todos os processos clínicos. "Transmitimos-lhes que traz uma maior segurança porque não há perdas nem trocas de nada. É absolutamente fiável, não há erros ou possibilidade de alguém alterar o que fazemos", resume o portuense de 63 anos, reconhecendo que "há sempre Velhos do Restelo - e às vezes até são os mais novos".
Perguntas a Luís Ferreira
Presidente do Hospital Dr. Francisco Zagalo
"Já fomos abordados por outros hospitais"
O gestor admite que a dimensão mais reduzida "neste caso foi uma oportunidade".
Como respondem aos utentes menos habituados às ferramentas digitais?
Implementámos o "Cidadão.Hosp", que é uma sala em que os cidadãos são apoiados pela equipa de serviço social no acesso à receita sem papel ou no registo no portal do SNS, entre outros. Os médicos identificam quem tem mais dificuldade e já encaminharam centenas de pessoas para esse gabinete.
E no caso dos funcionários mais infoexcluídos?
É verdade que nem todos utilizam o computador nas suas tarefas, pelo que têm a ajuda de outros funcionários. Na sala do trabalhador há também um computador com acesso à Internet que pode ser usado para justificar faltas, marcar férias, etc.
Ser um hospital pequeno ajudou neste processo?
Neste caso foi uma oportunidade. Foi mais fácil criar uma nova lógica de funcionamento, um registo mental nas pessoas de que conseguimos trabalhar sem papéis. Por ser um hospital pequeno, a própria SPMS utiliza-o muitas vezes para testar algumas soluções. E já fomos abordados por unidades da Figueira da Foz, Peniche ou Viana do Castelo para virem cá perceber o que estamos a fazer.
Os primeiros estilhaços atingiram os hábitos desta castiça assistente operacional, requalificada e desviada para outras tarefas, como ajudar a enfermeira na sala de pensos, preparar as marquesas, transportar materiais do laboratório ou orientar os utentes. "Agora é muito melhor. Tenho mais tempo para apoiar os doentes, que às vezes chegam aqui baralhados. "Dizer: ‘Precisa de ajuda?’. Antes não dava para fazer isso. Sinto que sou mais útil, sem dúvidas", relata Alexandrina Sousa, 65 anos.
A retirada de impressoras dos gabinetes médicos foi outra das pioneiras e arriscadas medidas deste plano, acabando ambas por ter um "impacto residual" na organização, relata o presidente do conselho diretivo, complementadas por outras "coisas simples". Foi Luís Miguel Ferreira que enviou o primeiro ofício assinado eletronicamente; os regulamentos passaram a ser produzidos, assinados e difundidos pela mesma via; e a solução de gestão documental que o hospital até já tinha, mas não utilizava, teve a licença reativada com mais horas de formação para os colaboradores.
"Inundação" sem dinheiro
Ex-assessor de Carlos Zorrinho na secretaria de Estado da Energia e Inovação e também na coordenação da Estratégia de Lisboa e do Plano Tecnológico, este licenciado em Matemática e doutorado em Sistemas de Informação entrou a 1 de setembro de 2017 para a administração de um hospital pequeno - serve cerca de 55 mil pessoas do concelho de Ovar e zonas limítrofes, como a Murtosa - "inundado de papéis" e com um problema no arquivo clínico.
"Avisaram-me logo que só havia espaço para mais dois ou três meses. Percebi que tinha de fazer alguma coisa", recorda o gestor. Falou com Henrique Martins, presidente da SPMS - Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (serve os hospitais com tecnologias de informação), que se espantou por "não [vir] pedir dinheiro, como os outros".
70%
Prescrição
Cerca de 70% dos doentes a quem é prescrita uma receita saem deste hospital sem papel. A média nacional é de 10%.
Após alguns dias a "partir pedra", com a "bênção" do então ministro da Saúde e em apenas um mês estava a ser lançado este projeto para a desmaterialização de registos e processos dentro do hospital, em que "a tecnologia, embora seja relevante, acaba por ser instrumental porque o que visa é uma alteração das rotinas, tentando eliminar o papel destes circuitos". Volvida a primeira fase em que não precisou de dinheiro, para "ir mais a fundo na mudança de processos" avançou com candidaturas a fundos comunitários - já está a executar uma e tem mais duas para aprovar e outra em preparação -, num investimento de 1,7 milhões de euros em ferramentas informáticas, vários aplicativos e ajuda externa para mapear os fluxos e ajudar os serviços na implementação em contexto de trabalho.
Mandamentos e liberdade
As consultoras deixam relatórios sobre o que fazer para desmaterializar determinado processo, mas depois é preciso operacionalizar. E para liderar esses dossiês há uma equipa mais restrita, com dez elementos, encabeçada pelo próprio presidente para "dar o exemplo" e composta por médicos, enfermeiros, administrativos e terapeutas. Ainda que tenha visto inicialmente "pessoas a olhar de lado para estas medidas", entre as cerca de 250 (incluindo os prestadores de serviço) que trabalham neste hospital do setor público administrativo, um dos cinco que restam no país, Luís Miguel Ferreira conta que "com o tempo vestiram a camisola".
Nisso ajudou a forte divulgação interna, que incluiu a imagem nos ‘desktops’ dos computadores e medidas menos convencionais, como os "10 mandamentos da desmaterialização", pintados em azulejos. "Não cobiçarás os papéis dos teus colegas" é um dos que mais diverte quem lê os dois painéis afixados na instituição.
Em 2018, face aos gastos nos dois anos anteriores, o hospital de Ovar consumiu menos 200 mil folhas de papel e poupou o corte de 22 árvores. A receita eletrónica disparou para 70% das prescrições, o que compara com a média nacional a rondar os 10%. Porém, para Arlete Cardoso, 46 anos, o maior entusiasmo foi ter deixado de ser "a chamada ‘rata de biblioteca’, fechada numa sala quase sem janelas". Depois de cinco anos a arquivar papel, a quebra no volume de processos libertou-a desta "atividade completamente rotineira, monótona e de desgaste físico" para o "muito mais aliciante" serviço de agendamento do bloco cirúrgico e de consultas pós-operatórias.
A figura
Rui Dias
Diretor clínico
Especialista de medicina interna há quatro décadas, há 15 anos Rui Dias trocou o Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa por esta unidade vareira, onde desde 2017 lidera uma equipa composta por cerca de 35 médicos. E foi uma figura relevante para o envolvimento destes profissionais na desmaterialização de todos os processos clínicos. "Transmitimos-lhes que traz uma maior segurança porque não há perdas nem trocas de nada. É absolutamente fiável, não há erros ou possibilidade de alguém alterar o que fazemos", resume o portuense de 63 anos, reconhecendo que "há sempre Velhos do Restelo - e às vezes até são os mais novos".
Perguntas a Luís Ferreira
Presidente do Hospital Dr. Francisco Zagalo
"Já fomos abordados por outros hospitais"
O gestor admite que a dimensão mais reduzida "neste caso foi uma oportunidade".
Como respondem aos utentes menos habituados às ferramentas digitais?
Implementámos o "Cidadão.Hosp", que é uma sala em que os cidadãos são apoiados pela equipa de serviço social no acesso à receita sem papel ou no registo no portal do SNS, entre outros. Os médicos identificam quem tem mais dificuldade e já encaminharam centenas de pessoas para esse gabinete.
E no caso dos funcionários mais infoexcluídos?
É verdade que nem todos utilizam o computador nas suas tarefas, pelo que têm a ajuda de outros funcionários. Na sala do trabalhador há também um computador com acesso à Internet que pode ser usado para justificar faltas, marcar férias, etc.
Ser um hospital pequeno ajudou neste processo?
Neste caso foi uma oportunidade. Foi mais fácil criar uma nova lógica de funcionamento, um registo mental nas pessoas de que conseguimos trabalhar sem papéis. Por ser um hospital pequeno, a própria SPMS utiliza-o muitas vezes para testar algumas soluções. E já fomos abordados por unidades da Figueira da Foz, Peniche ou Viana do Castelo para virem cá perceber o que estamos a fazer.