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"Médicos de família: o coração dos cuidados de saúde" é o lema deste ano do Dia Mundial do Médico de Família (MF). Como se sentem os MF portugueses?
Os médicos de família estão preocupados com a sua situação atual, em particular no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Somos cada vez menos no SNS, com uma sobrecarga de trabalho cada vez maior e com condições de trabalho muito complexas nas mais variadas áreas, seja a nível salarial, seja de carreira, de organização e autonomia das equipas, de material e sistemas de informação. Enfim, um conjunto de situações que faz com que os MF se sintam desanimados e mais tristes do que seria desejável por verem o seu trabalho pouco valorizado.
O ministro da Saúde anunciou recentemente a abertura integral de vagas para MF (mais de 900), bem como vagas carenciadas com remuneração majorada em 40% nos agrupamentos de centros de saúde com mais de 25% dos utentes sem MF. Qual é a sua opinião sobre estes anúncios?
A abertura e a colocação de todas as vagas que estão necessitadas de MF a concurso é, sem dúvida, uma boa medida, algo ansiado há bastante tempo. E significa que o Ministério da Saúde assume, pela primeira vez, a real dimensão do problema, dizendo-nos que faltam quase 1000 MF em Portugal. Mas é uma medida que precisa de se manter nos próximos anos, porque de forma isolada pouco ou nada vai resolver. Já a remuneração majorada não traz nada de novo, pois são incentivos temporários e sabemos que ninguém vai mudar a sua vida toda por um incentivo que dura poucos anos. Além disso, criam uma situação de injustiça em relação aos colegas que já estão nesses locais e que estão a trabalhar na maioria dos casos sem quaisquer incentivos. Por isso, a APMGF defende que os incentivos sejam integrados numa política mais alargada e alargados a toda a equipa e a toda a unidade que é considerada carenciada.
Que outras medidas poderiam ajudar a superar a falta de interesse dos profissionais pelo SNS?
A questão salarial é absolutamente central. Muitas vezes acaba por ser esquecida, até com a ideia do politicamente correto, mas é fundamental, principalmente porque os médicos perderam muito poder de compra nos últimos anos e, quando comparados com outros países europeus, têm uma remuneração muitíssimo menor. Por isso, se queremos manter os MF no SNS temos de lhes pagar de forma digna. Depois, é preciso rever a carreira médica, que atualmente tem uma progressão meramente administrativa e lenta e um sistema de avaliação totalmente desadequado, e passar para uma progressão baseada no mérito, célere e com efetiva diferenciação entre os vários graus e categorias. Depois, não podemos esquecer que a reforma dos Cuidados de Saúde Primários (CSP), que começou há 15 anos, tem estado praticamente estagnada. Há uma vontade aparente de avançar novamente com as Unidades de Saúde Familiar (USF) de modelo B, mais atrativas para os profissionais e com ganhos para os utentes, mas, passada uma década e meia, só isso não chega. É preciso ajustar esse modelo a todos os colegas que não estão em USF e rever o próprio modelo, tendo em conta os tempos atuais, generalizando um pouco mais os incentivos aos profissionais. Depois, existe um outro problema muito complexo que é a rigidez na organização da atividade das equipas e dos horários, algo que não acontece no setor privado, e que acaba por ser apelativo, pois permite uma flexibilidade maior. Adicionalmente, são inúmeros os défices estruturais de meios e de recursos físicos e materiais, como as instalações, os sistemas de informação, os vários equipamentos de consumo clínico e não clínico que muitas vezes vão escasseando, fatores que juntos criam este contexto mais negativo, menos apelativo e que convém resolver. Sabemos que não vamos mudar isto de um dia para o outro, mas temos de começar a trabalhar em todas estas áreas, sob pena de continuar a ter um défice de MF no SNS em relação às necessidades.
De 2019 para 2023, o número de utentes sem médico de família quase triplicou. Atualmente, mais de 1 milhão e 600 mil portugueses não têm médico de família atribuído (15,18% da população). O que justifica este retrocesso?
O problema de fundo prende-se com dois aspetos: um pico de reformas de MF formados nos anos 70 e início dos anos 80, que já era previsível, relacionado com a demografia médica; e o défice na capacidade de captar e reter os MF no SNS. Só conseguimos reter cerca de 60-70% dos recém-especialistas, deixando sair logo à partida cerca de 150 colegas em cada um dos concursos, além dos que saem após os primeiros meses da sua colocação e dos que já estão no SNS, mas que perante todo este cenário também acabam por sair a pouco e pouco. Por isso, existe sempre um balanço negativo entre as entradas e as saídas. Atualmente são menos de 5500 os MF no SNS…
Porque é que o Governo não garante as condições de atratividade necessárias?
Essa é uma excelente pergunta e não tem a ver especificamente com este Governo, mas também com todos os anteriores. Foram imensos os alertas de que iria haver um pico de reformas nesta altura e que era preciso garantir que os internos que estão em formação ficassem no SNS. Mas, foi tudo feito ao contrário. A reforma dos CSP ficou parada, a passagem das unidades ao modelo B foi garrotada, as condições de trabalho foram deterioradas, e, durante a pandemia, os médicos de família foram utilizados para tudo e mais alguma coisa. A atividade nos centros de saúde parou para pôr os MF a telefonar insistentemente a pessoas que não tinham doença grave, os MF foram destacados para acompanhar os surtos em lares porque nunca se previu outra resposta para aquelas instituições, foram colocados em estruturas de apoio de retaguarda, e como se não bastasse, quando chegou a altura da vacinação, foram colocados os médicos e os enfermeiros de família a 100% no processo de vacinação.
Os médicos de família foram utilizados para tapar todos os buracos…
Sim, somos uns tapa-buracos para a tutela, é assim que nos sentimos. Quando há um problema e mais ninguém consegue resolver chamam os MF, passando a ideia de que a nossa função não é importante e não tem valor e que pode ser substituída por uma coisa qualquer. Ora, se quem nos tutela entende que nós não temos valor, então está na altura de procurar outro local de trabalho e é isso, infelizmente, que os colegas acabam por fazer ao sair do SNS.