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SNS está cada vez menos acessível e universal

A pandemia por covid-19 veio “escancarar” as fragilidades de um Serviço Nacional de Saúde obsoleto. O acesso universal proclamado na Constituição é uma realidade apenas para alguns.

28 de Abril de 2023 às 17:11
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Passados 44 anos da sua fundação, o Serviço Nacional de Saúde revela grandes fragilidades e desafios, principalmente na última década. A pandemia por covid-19 veio tornar ainda mais visíveis as suas debilidades.

"O SNS desenhado nos anos setenta permitiu resolver muitos dos problemas da saúde do passado, mas está pouco preparado para enfrentar os desafios de saúde de hoje ou amanhã", alerta o relatório sobre "Saúde e Ação Social" da SEDES – Associação para o Desenvolvimento Económico e Social, de 2021, coordenado por Nadim Habib, economista que tem estudado a fundo o setor da saúde.

Segundo o documento, muito antes da covid-19, "estava já em curso há décadas uma outra pandemia silenciosa, responsável por mais de 70% das mortes prematuras em Portugal: a pandemia das doenças relacionadas com os estilos de vida". A SEDES defende que "mudanças estruturais no SNS tal como o conhecemos são urgentes".

O relatório aponta também o dedo à organização do sistema, que ainda assenta numa lógica de planeamento central, o que gera "uma complexidade desnecessária e consequente entropia na tomada de decisão". "Um mundo de evolução científica acelerada, com uma população mais qualificada que necessita de cuidados personalizados e próximos, exige um sistema de saúde mais simples e mais ágil", reclama o parecer.

No diagnóstico ao SNS, a SEDES aponta "enormes desafios de acesso, com um número significativo de portugueses com acesso limitado a serviços de saúde", desafios de eficiência "num sistema aparentemente incapaz de gerar melhorias de produtividade que permitem libertar recursos para investimentos críticos".

 

Pobres têm mais barreiras

Também o relatório elaborado pela OCDE sobre o "Estado da Saúde na UE Portugal – Perfil de saúde do país 2021" destaca as "barreiras persistentes ao acesso". "Apesar de o SNS assegurar a cobertura universal de todos os cidadãos, subsistem dificuldades de acesso para alguns grupos da população, em particular para as pessoas com baixos rendimentos", sublinha o documento.

Aliás, em Portugal, as disparidades nas necessidades de cuidados de saúde não satisfeitas entre os escalões de rendimentos são mais significativas do que na maioria dos países. Em 2019, 3,5% das pessoas no quintil de rendimentos mais baixo comunicaram ter necessidades médicas não satisfeitas devido ao custo, à distância ou aos tempos de espera, em comparação com apenas 0,2% no quintil de rendimentos mais alto, de acordo com o inquérito EU-SILC.

Nos cuidados dentários, por exemplo, mais de 20% das pessoas com rendimentos mais baixos afirmaram ter necessidades de cuidados não satisfeitas, em comparação com 1,8% das pessoas com rendimentos mais altos.

Todas estas inacessibilidades aumentaram subitamente durante a crise da covid-19, quer devido à perturbação dos serviços quer devido ao receio das pessoas de contraírem o vírus, tendo um inquérito à escala europeia apurado que 34% dos portugueses comunicaram ter abdicado de um exame ou tratamento médico necessário durante os primeiros 12 meses da pandemia — uma percentagem muito superior à média da UE de 21% (Eurofound, 2021).

 

Sem médico de família

As longas filas de pessoas à porta dos centros de saúde de madrugada para conseguir uma consulta com um médico de família não é um cenário do passado. É uma realidade que persiste e que tem mesmo vindo a agravar-se. Se em 2019 existiam cerca de 660 mil utentes sem médico de família, esse número quase que triplicou. Segundo os mais recentes dados do site BI-USF (abril 2023), 1,6 milhões de portugueses não têm médico de família atribuído (15,18% da população portuguesa), o que corresponde a um retrocesso para números registados em 2012.

Por outro lado, e de acordo com o relatório da SEDES já citado anteriormente, "as promessas de acesso alargado a cuidados de saúde oral, visual e mental continuam por cumprir, bem como o acesso a cuidados continuados e paliativos". Como consequência, "cerca de 3 milhões de portugueses têm hoje seguro de saúde, e recorrem de forma generalizada ao setor privado por falta de resposta do SNS".

Em 2019, 39% das consultas de especialidade e 22% das consultas urgentes ultrapassaram os tempos máximos de resposta. No final de 2019, havia mais de 245.000 pessoas em lista de espera para cirurgia, das quais 50.000 a ultrapassar os tempos máximos de espera, e 22 hospitais do SNS não estavam a cumprir os tempos máximos de espera para cirurgias oncológicas prioritárias. "Os desafios em termos de acessibilidade são ainda mais agravados pelo desequilíbrio a nível territorial", referiu o documento. E alertou para "as disparidades regionais no acesso aos serviços de saúde em territórios de baixa densidade (como é o caso do Alentejo)".

Mais recentemente, como revela o Relatório de Primavera, do Observatório Português dos Sistemas de Saúde (OPSS) de 2022, quando comparado o período 2019/2021, embora exista alguma recuperação na produção, "constata-se que os níveis da pré-pandemia ainda não foram repostos".

Existem algumas exceções, com especial destaque nas consultas dos cuidados de saúde primários (consultas médicas não presenciais ou inespecíficas) e nas consultas hospitalares por telemedicina, sendo evidente que "o crescente uso da telessaúde, nas suas diversas variantes, ajudou a amortecer o impacto da covid-19 no acesso aos cuidados ao longo de 2020 e de 2021".


Sistema gerido "como há 50 anos"

Quase 30% dos utentes consideram que o SNS piorou o serviço prestado. Entre as principais queixas da população estão os tempos de espera para consultas e a facilidade no acesso aos cuidados de saúde. "48% das pessoas dizem que os tempos de espera nas urgências pioraram", nota Pedro Simões Coelho, coordenador do estudo "Índice de Saúde Sustentável", da Nova Information Management School, apresentado em Lisboa. Na ocasião, Fernando Araújo, diretor-executivo do SNS, criticou a atual gestão do SNS, defendendo que a solução será adotar "uma verdadeira gestão integrada" e apostar nos cuidados de proximidade e num plano de "redimensionamento dos serviços de urgência".



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