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Literacia em saúde: não é uma questão de gosto, é uma questão de vidas

A opinião de Cristina Vaz de Almeida, presidente da Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde.

Negócios 24 de Agosto de 2023 às 10:04
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A repetição incessante das palavras "literacia em saúde" tem ecoado nos últimos tempos, em vários meios impressos, digitais, orais, de uma forma intensa, repetida, mas por vezes num vazio de compreensão. Literacia em saúde não é uma questão de gosto. É mesmo uma questão de vidas.

A literacia em saúde salva vidas, afirma a Organização Mundial da Saúde. E como pode isso suceder? Este constructo representa uma agregação de palavras em que se estrutura um conceito profundo, ativado desde 1974, e cunhada por um autor de nome Simonds.

A literacia em saúde diz respeito às competências, motivação para se conseguir um melhor acesso, compreensão e uso dos recursos de saúde que estão num continuum na nossa vida.


Vivemos a saúde e tomamos decisões relacionadas com a nossa saúde em todos os momentos da nossa vida: comer um prato de batatas fritas cheias de molho ou preferir um peixe grelhado com salada? Beber uma água fresca ou uma bebida açucarada gaseificada? Subir de elevador para o local de trabalho ou o apartamento onde resido ou, em vez disso, subir pelas escadas? Ir às urgências hospitalares sempre que me dói mais a cabeça ou há alguma má-disposição, ou esperar mais algum tempo e ir aos serviços de proximidade e ser observado/a pelo médico de medicina geral e familiar? A todo o momento tomamos decisões que importam e impactam a nossa saúde.

E se racionalizamos o que é bom para nós, agimos muitas vezes de forma diferenciada quando tomamos decisões no dia a dia. E, por impulso, tomamos muitas decisões desastrosas para a nossa saúde.

E o que nos falta? Na maioria das vezes, autorregulação. Caso exemplar disso mesmo é quando movidos pela necessidade imperiosa de saúde, corremos para as urgências, pois sabemos que pelo menos ali haverá alguém competente para nos auxiliar na nossa dor.

Os números de urgências "não urgentes" rondam os 40% do total de urgências hospitalares. Os números mostram que em Portugal há cerca de 500 mil acessos à urgência por mês, o que equivale a 6 milhões de urgências por ano (dados de 2023).


Estes acessos aos serviços hospitalares sem carácter de urgência (pulseira verde ou azul) são muitas vezes feitos por pessoas mais velhas, que recorrem para uma maior conexão social. Na sua solidão ou isolamento, a ida ao hospital é uma maneira de contacto com a palavra, com a relação. E esta verdade deve ser pensada de forma profunda e com responsabilidade social, arranjando soluções para uma população que sofre ou está só.


O que fazer com estas pessoas mais velhas, que de facto não têm situações de caráter de urgência física mas têm uma urgência psicológica gritante? Por exemplo, ter um serviço contínuo nos hospitais, de telefonemas, apoiado por estagiários que por lá passam de forma regular – sejam de medicina, psicologia, enfermagem, terapeutas –, poderia ser uma forma de melhorar e antecipar estas deslocações.

A verdade é que fazer telefonemas prévios a estas listas já tão bem conhecidas de pessoas que habitualmente recorrem às urgências poderia ser uma forma significativa de diminuir a carga de atendimentos verificada todos os dias.


Por outro lado, a possibilidade, já efetivada, de o SNS 24 orientar os doentes para o autocuidado e agendarem consultas nos cuidados de saúde primários parece ser uma boa política na gestão da saúde em Portugal, e que foi recentemente implementada (maio 2023).


Este é o caminho da literacia em saúde, que permite ao cidadão cuidar da sua saúde, prevenir a doença e promover a sua saúde.

Capacitar é a palavra de ordem: tanto para o cidadão em geral como para os profissionais das áreas da saúde e do setor social que interagem continuamente com as pessoas nas suas práticas diárias.

Para além da formação biomédica, as competências comunicacionais, relacionais, parecem ser a chave para muitas barreiras que existem e são manifestadas pelos utentes dos serviços de saúde: "não compreendi o que o médico disse"; "não sei o que fazer para o meu autocuidado"; " não me recordo do que o profissional me disse"; "tenho vergonha de perguntar"; "por mim, vou sempre à urgência"; "não sei usar este aparelho (termómetro)"...


As várias barreiras associadas à falta de acesso, seja ele geográfico, financeiro, cultural, limitam dramaticamente a capacidade de cuidar da saúde, prevenir ou promover a saúde.

As várias barreiras geradas pela falta de compreensão da linguagem complexa de saúde conduzem a erros e a eventos adversos, gerados por má comunicação.


A incapacidade de usar bem os recursos de saúde é limitadora, gera maiores custos e riscos para o sistema, para os profissionais e para os utentes no geral. A literacia em saúde tem a ver com isto tudo.


Não é por acaso que os números mostram que os portugueses têm apenas cerca de seis anos e meio de qualidade de vida após os 65 anos e que os nórdicos nos batem com cerca de 15 anos após a idade de reforma. Estes dados vêm reforçar o que a ciência nos conta sobre a importância dos estilos de vida saudável. É que a promoção da saúde e a literacia em saúde andam de mãos dadas.


Terei mais literacia em saúde e, por isso, saberei promover melhor a minha vida com saúde e a qualidade que dela espero; alimento-me melhor preferindo a dieta mediterrânica; tenho uma atividade física regular e adaptada à minha idade; procuro ter um maior bem-estar e ligações sociais e, assim, todo este autocuidado e o cuidado que proporciono aos outros originarão melhores resultados em saúde. Ganham a pessoa, os grupos, as organizações e a sociedade no seu todo.


Mas a literacia em saúde também significa que os profissionais das várias áreas da saúde estão mais bem preparados para esta relação terapêutica complexa: têm mais escuta ativa, não interrompem tantas vezes o utente, utilizam uma linguagem clara e simples para traduzir o jargão técnico, usam as técnicas da literacia em saúde para garantir que o utente realmente compreendeu o que foi dito nas instruções de saúde (por exemplo o teach back e o Chunk & Check).


Devemos tornar os sistemas menos complexos para que se adaptem às pessoas e não esperar que sejam as pessoas a adaptar-se à complexidade dos sistemas, sublinha a especialista em literacia em saúde na Europa, Kristine Sorensen. Com razão. De facto, a literacia em saúde não é uma questão de gosto. É uma questão de vidas.

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