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Helena Canhão: “Não queremos formar médicos a qualquer preço”

Quando começam a surgir os primeiros cursos de Medicina privados, Helena Canhão, presidente do Conselho de Escolas Médicas Portuguesas, avisa que “a qualidade tem de ser a principal preocupação”. Defende condições iguais entre faculdades privadas e públicas e lembra que estas últimas lidam com “enormes desafios de financiamento”.

18 de Maio de 2023 às 14:30
Helena Canhão professora de Medicina, coordenadora da Comprehensive Health Research Center e chefe da Unidade de Reumatologia do Hospital Santo António dos Capuchos Pedro Catarino
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A inovação e o pioneirismo estão no seu ADN. Além de ser a primeira mulher a liderar a Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, foi também a primeira mulher doutorada e agregada na especialidade de Reumatologia em Portugal. Conversámos com Helena Canhão, professora catedrática de Medicina, coordenadora da Unidade de Investigação Comprehensive Health Research Center, chefe da Unidade de Reumatologia do Hospital Santo António dos Capuchos e membro do Conselho de Curadores do Portugal Health Summit, uma iniciativa do Jornal de Negócios, Sábado e Lusíadas Saúde.

Preside desde janeiro de 2023 ao Conselho de Escolas Médicas Portuguesas (CEMP). Quais são os principais desafios que estas enfrentam atualmente?
Como em todas as instituições, o futuro obriga-nos a refletir no caminho que já percorremos e a focar-nos onde queremos chegar. No caso das oito escolas médicas públicas portuguesas incluídas neste Conselho, um dos principais desafios é adaptar os seus currículos aos alunos de hoje, mas sobretudo os de amanhã, porque serão esses estudantes os médicos nas próximas décadas. Queremos, por isso, ter médicos cada vez mais competentes, mais modernos e mais atualizados e, para isso, temos de promover, de forma contínua, a qualidade e a inovação nos modelos de ensino. Depois, é fundamental preparar os atuais estudantes para os desafios da medicina que ainda não conhecemos e isso faz-se dotando-os de capacidade crítica e de pensamento inovador. Precisamos de profissionais capazes de pensar mais e melhor. Depois, também não nos podemos esquecer dos desafios financeiros, porque nenhuma instituição sobrevive se não tiver a capacidade financeira para se adaptar e renovar. Atualmente, existe uma clara diferença entre o custo de formação de um estudante de Medicina e o valor que é pago em propinas e transferido do Orçamento do Estado para cada faculdade. E os diretores debatem-se hoje com este enorme desafio, que passa por garantir um ensino de excelência num contexto muito difícil.

Quais são as suas principais prioridades enquanto presidente do CEMP?
A principal prioridade é trabalhar em equipa com os outros diretores, envolvendo todas as faculdades e pugnar por um ensino da medicina e das ciências médicas de excelência, preparando com as melhores competências os médicos e profissionais de saúde do futuro. É importante demonstrar à tutela, nomeadamente à ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, a especificidade do ensino da Medicina. Esta especificidade tem implicações importantes, por exemplo, no número de vagas para estudantes do regime geral de acesso, nos concursos e regimes especiais, no número de docentes, no ensino clínico descentralizado nos estabelecimentos de saúde e no financiamento das escolas médicas. Não se pode tratar de forma igual algo que é tão específico, porque o resultado é catastrófico para as escolas, para os estudantes, para o ensino, e principalmente para a saúde no nosso país. E nós queremos assegurar que a qualidade é o guia de todas as escolas médicas.

Quais os passos que têm sido dados para que o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES) entenda que estamos perante um curso que tem características muito diferentes de qualquer outro?
Recentemente, o CEMP reuniu com a ministra Elvira Fortunato e apresentámos as nossas preocupações e sugestões, pois é importante perceber as necessidades do curso de Medicina, as suas diferenças. É um curso que requer muita tecnologia, simuladores e centros de simulação para os estudantes aprenderem sinais e gestos técnicos antes de estarem em contacto com doentes reais. Tem também outra característica única: os dois primeiros anos são passados na faculdade, mas os restantes quatro acontecem em hospitais e centros de saúde. E, aqui, a dimensão das turmas tem uma importância ainda maior. Se, em outros cursos as turmas podem ter 40 alunos sem qualquer problema, em Medicina isso não é possível. Podemos, no máximo, ter dois ou três, o que tem um impacto estrondoso nos custos e na organização. É por isso que defendemos uma articulação cada vez maior entre o MCTES e o Ministério da Saúde. E esse tem sido, e vai continuar a ser, o nosso trabalho nos próximos meses: dar a conhecer a ambos que um ensino de Medicina de qualidade tem especificidades que mais nenhum curso tem e que estas devem ser consideradas.


É preciso mais verbas para as faculdades

Disse recentemente que "as faculdades médicas públicas enfrentam um défice de cerca de 10 mil euros por aluno/ano, o que significa que a abertura de mais vagas se está a tornar asfixiante, dificultando a formação adequada dos alunos". Quais podem ser as soluções?
Devemos considerar dois aspetos. Um deles é o subfinanciamento, porque, como já referi, um estudante de Medicina tem um custo muito mais elevado do que o valor que as faculdades recebem do Estado para a sua formação. É, por isso, necessário aumentar a dotação do Orçamento do Estado para as faculdades de Medicina. Por outro lado, também é preciso que as faculdades de Medicina públicas possam utilizar instrumentos que as outras faculdades dispõem, como por exemplo ter um valor de propina diferente entre os primeiros três anos de curso e os últimos três anos ou abrir vagas para estudantes internacionais. Por outro lado, estas enfrentam ainda outros desafios, como a necessidade de formar os estudantes em hospitais e unidades de cuidados de saúde primários, com serviços muitas vezes sobrecarregados, além da necessidade de dispor de centenas de docentes convidados para dividir os estudantes em pequenos grupos, pois não é possível dar aulas com grande número de estudantes na presença de doentes.

Portugal tem já um curso de Medicina privado, o da Universidade Católica de Lisboa, e outro que vai começar na Universidade Fernando Pessoa, no Porto. O CEMP foi ouvido nestas situações? E qual a sua posição relativamente a estes novos cursos?
Até ao momento o CEMP não foi ouvido nem para o curso da Universidade Católica Portuguesa, nem para o da Universidade Fernando Pessoa. Mas, no futuro, irá ter membros a integrar as comissões de trabalho que venham a ser criadas para avaliar novos cursos. O que defendemos, para estes ou outros cursos, é que a qualidade tem de ser a principal preocupação. Não queremos formar médicos a qualquer preço. Queremos médicos de excelência, sejam eles formados numa instituição pública ou privada. Este ponto é fundamental. Depois, claro, é necessário que todas as faculdades estejam em pé de igualdade. Não há motivo para que a legislação permita que as escolas privadas de Medicina possam receber alunos internacionais, mas as públicas não. É urgente alterar a lei para permitir o ingresso de alunos internacionais nas oito escolas médicas públicas. Aliás, somos as únicas oito faculdades portuguesas em que isso não é possível.

Já partilhou estas ideias de mudança com a tutela do Ensino Superior?
Já apresentámos as nossas propostas à tutela na audiência que nos foi concedida pela ministra Elvira Fortunato. Esta foi uma oportunidade de exposição e de debate muito franco e aberto. Penso que a tutela não conhecia em profundidade os detalhes da situação que apresentámos e, no imediato, houve um compromisso para avaliar as situações. Por isso, aguardamos com expectativa as próximas ações do MCTES.

O que é que o Governo precisa de fazer urgentemente nestas áreas?
Em primeiro lugar, é urgente criar uma carreira médico-docente que dê condições aos médicos do Serviço Nacional de Saúde (SNS) para ensinar bem os futuros médicos. Em segundo, criar uma carreira apelativa no SNS e, em terceiro lugar, financiar as escolas médicas de forma mais justa e adequada. Estas medidas, que teriam um enorme impacto no ensino médico e no futuro do sistema de saúde, podem ser facilmente implementadas através da valorização dos centros académicos clínicos e do seu suporte pelos Ministérios da Ciência, Educação e Ensino e da Saúde.

Qual a mensagem que gostaria de deixar para os profissionais de saúde e para os estudantes de Medicina em Portugal?
A Medicina é uma profissão que tem uma responsabilidade sem comparação. Lidamos com a vida das pessoas, e com as suas expectativas. Ser médico, é sobretudo saber ouvir e saber comunicar, é ser empático, saber trabalhar em equipa, é estar sempre atualizado e contribuir para uma sociedade mais saudável, justa e feliz. Trabalhamos para que os estudantes da NOVA Medical School, e de forma geral os estudantes de Medicina, sejam cada vez mais melhores médicos no futuro.


PERFIL
"A nova escola de Medicina do futuro"
Helena Canhão é a primeira mulher a liderar a Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa e com um mandato cheio de inovação. "Com a nova reforma curricular, o nosso objetivo foi definir o que queremos que o aluno/médico conheça e saiba executar, quando termina o mestrado integrado em Medicina e a partir daí construir os conteúdos das unidades curriculares e não o contrário. É essa mudança que estamos a operar no currículo da NOVA Medical School", afirma. Mas alerta que são precisas novas instalações: "Novos centros de simulação, mais tecnologia, salas de estudo autónomo, salas para um ensino em equipa." "Ainda não temos estas instalações, mas já as temos projetadas no novo campus em Carcavelos e no Hospital Oriental de Lisboa. A breve prazo teremos as condições para efetivar de forma gradual a mudança do curso. Posso afirmar que a NOVA Medical School e a Reitoria da Universidade NOVA de Lisboa estão empenhadas nestas reformas. Contamos também com o apoio do tecido empresarial e da sociedade civil nestas mudanças. Há um enorme compromisso para realizar a nova escola de Medicina do futuro de forma inovadora e responsável."
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