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Alexandre Quintanilha: “Estou convencido de que a pandemia nos ensinou bastante”

Os desafios globais da saúde pública e a crescente influência do “me first” nas políticas internacionais foram alguns dos assuntos da conversa com Alexandre Quintanilha, presidente do Conselho de Escola da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) e curador do Portugal Health Summit.

15 de Junho de 2023 às 14:00
Alexandre Quintanilha defende uma maior colaboração entre as instituições do setor da saúde. David Cabral Santos
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É um "otimista" e um "curioso" do mundo à sua volta. Investigador na área  da Física, professor catedrático jubilado do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, escritor, autor e editor nas áreas da Biologia, do Ambiente e da Física Aplicada. O curador do Portugal Health Summit, Alexandre Tiedtke Quintanilha, é também deputado do PS e presidente do Conselho de Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP). Diz-nos, logo no início da conversa, que "a saúde pública está na moda porque a pandemia a trouxe à ribalta", algo que é, na sua opinião, "criticável", embora seja compreensível. A relevância da investigação na área da saúde, e a dinâmica entre o tempo necessário para a ciência e as decisões políticas, foram alguns dos temas abordados nesta entrevista no âmbito do Portugal Health Summit, o maior fórum de saúde nacional, um projeto do Jornal de Negócios, SÁBADO e Lusíadas Saúde.

 

Há portugueses que nem sequer tinham ouvido falar da Saúde Pública  (SP) antes da pandemia. O que tem de ser melhorado na SP em Portugal?

Penso que a Saúde Pública é a "irmã" negligenciada da saúde e são as pandemias que a reabilitam. E, sim, é verdade que antes da pandemia por covid-19 havia portugueses que nem sequer sabiam o que era a saúde pública. Além disso, os desafios da SP não são nacionais. E Portugal, comparado com muitos dos outros países do mundo e com o que era há umas décadas, está muito avançado nessa área. Aliás, os desafios da SP também se devem em grande parte à globalização crescente, que agora começa a ser contestada, com a ideia do "me first" a invadir um pouco as  políticas. Ou seja, estamos perante desafios que são globais e que têm duas fontes. Por um lado, o crescimento das cidades, que, se tiverem um milhão de habitantes, têm 10 milhões de animais – gatos, cães, periquitos, lagartos, galinhas, coelhos, pombos, morcegos e ratos - e têm triliões de vetores que passam destes animais para o Homem assim como dos homens entre si e para outros animais, o que também facilita a propagação de pandemias. Por outro lado, as deslocações. Depois de termos estado fechados em casa, hoje todos queremos viajar por esse mundo fora, o que também contribui para a propagação das pandemias.

 

Mas que desafios globais são esses em concreto?

São imensos, mas posso elencar alguns. A alteração das pirâmides demográficas é uma das grandes questões da SP. Há 40 ou 50 anos tínhamos uma população mundial com muitos jovens e poucas pessoas idosas e, atualmente, em muitos países já não é uma pirâmide, mas sim um paralelograma (risos), consequência de algo muito interessante: uma aposta na educação das mulheres. Em muitos países, as mulheres tinham seis, sete e oito filhos e quando apostaram na sua educação, as taxas de natalidade baixaram imenso porque estas começaram a perceber que tinham outras coisas para fazer talvez tão ou mais interessantes do que ter filhos. E, portanto, esta alteração das pirâmides traz problemas enormes de vários tipos, nomeadamente o facto de termos agora uma população idosa mais frágil.

Depois, outro enorme desafio são as alterações climáticas, que vão ter um efeito enormíssimo não só na produção de comida – as secas e as inundações estão a destruir muita da produção agrícola no mundo –, mas também na progressão das pandemias. O facto de os mosquitos sobreviverem desde que as temperaturas não venham muito abaixo faz com estes vetores se possam propagar fora dos trópicos, vir para as zonas temperadas do planeta e, portanto, os efeitos das alterações climáticas são também uma área muito sensível e da qual nós sabemos pouco.

A literacia na saúde e a desinformação constituem igualmente um desafio, bem como a insegurança no trabalho – a ideia de que uma pessoa estuda durante 15 anos e depois passa 40 anos a trabalhar no mesmo emprego e depois 10 ou 20 na reforma está a desaparecer.

Por fim, e ainda sobre covid-19, estamos ainda muito longe de perceber os seus efeitos a longo prazo. Existem atualmente milhões de pessoas que estão a sofrer consequências respiratórias, musculares, neuronais, em relação às quais sabemos muitíssimo pouco…

 

E podíamos saber mais?

Eu espero bem que sim. Aliás, uma das coisas que gosto muito de enfatizar foi a rapidez com que apareceram vacinas. Estamos numa altura do conhecimento civilizacional, em que a resposta à pandemia foi extraordinariamente rápida. Acho absolutamente espantoso que em menos de um ano tenhamos tido várias vacinas à nossa disposição – ou pelo menos à disposição dos que tinham dinheiro para as pagar.

 

O país está mais preparado para uma nova pandemia?

Penso que sim. Percebemos que quando há necessidade de focar a investigação numa determinada área nós conseguimos – não só por razões de generosidade, mas também por razões económicas, pois sabemos que as vacinas também são uma fonte muito importante de ganhos económicos e que as pessoas vacinadas podem continuar a trabalhar.

Enquanto a ciência leva tempo, o conhecimento leva tempo, as decisões políticas não têm esse luxo, têm de ser tomadas mesmo sem haver o conhecimento todo.

Então a pandemia ensinou-nos alguma coisa…

Sim, eu estou convencido de que esta pandemia nos ensinou bastante. Ainda me lembro quando havia aquelas reuniões no Infarmed, em que estavam os médicos, os matemáticos, os peritos, os membros do Parlamento, o Presidente da República e o primeiro-ministro, e havia pessoas que gozavam com aquilo, achavam que era exagerado, mas eu penso que aquelas reuniões ajudaram a criar um clima de confiança, que é algo muito difícil. Eu sou um otimista em relação ao mundo à  minha volta e acho que a pandemia  nos ensinou também a perceber uma outra coisa fundamental, que é o tempo que as coisas demoram. Enquanto a ciência leva tempo, o conhecimento leva tempo, as decisões políticas não têm esse luxo, têm de ser tomadas mesmo sem haver o conhecimento todo.

 

Qual é para si a importância da colaboração entre instituições públicas, privadas e sociais no setor da saúde em Portugal?

Eu penso que as coisas estão a melhorar imenso, mas, voltamos à questão da confiança. As pessoas têm muita dificuldade em colaborar com colegas que estão próximos de si. É mais fácil colaborar com pessoas dos EUA, da Suécia, de Itália, do Brasil – falo da área científica, que é aquela que eu conheço melhor. Não nos podemos esquecer de que Portugal teve 300 anos de inquisição, seguidos de mais de um século de instabilidade política e económica gravíssima, que deu depois início à República, que fomos à bancarrota sei lá quantas vezes no fim do século XIX e que depois tivemos quase meio século de ditadura. Nós somos muito desconfiados uns dos outros e não é em duas gerações que isto muda. Felizmente, isso está a mudar lentamente. Portugal já passou da cauda da Europa para cima da média dos países da OCDE em termos de produção científica de qualidade e as pessoas estão a perceber que ali ao lado há competência. 

Tenho muito medo de que a eficiência afete a qualidade porque o tratar mais pessoas, mais depressa, não me parece que resulte."


"Perceber o que um doente tem leva tempo"

Também se discute muito a necessidade da modernização da gestão da saúde…
Sim, há uma grande discussão à volta disso, dizendo que os sistemas podiam ser mais eficientes… Isso faz-me lembrar o caso da minha sogra, com 80 anos, quando ia ao médico em Nova Iorque. Lá, os médicos têm um tempo muito limitado para estar com o doente e, portanto, a senhora ainda estava a começar a contar a sua história e ele já lhe estava a dar umas palmadinhas nas costas dizendo-lhe "tome estes medicamentos e vai ficar melhor". Ou seja, esse nível de eficiência não me parece que seja muito positivo. Eu venho da área do conhecimento e sei que este leva tempo, e que perceber o que um doente tem não deve ser muito diferente, leva tempo.

Como pode a ciência - e o conhecimento - fazer evoluir o setor da saúde?
Já há várias décadas que existe um grande debate sobre a importância da investigação fundamental versus investigação aplicada. Eu tive a sorte de ter vários mentores durante a minha vida que sempre me disseram que "quando a pessoa está a fazer investigação fundamental de qualidade, o número das aplicações que daí saem são imensas". Portanto, estas duas áreas estão muito interligadas e tentar pôr mais ênfase numa do que na outra é mais por razões políticas do que por razões científicas, na minha opinião. Frequentemente o que falta é a capacidade de arriscar e de não desistir quando se falha.

E como tem sido a trajetória portuguesa no que toca à ciência e inovação?
Portugal tem feito uma trajetória interessante. Nos últimos 20-30 anos a evolução do investimento na ciência e na tecnologia foi enorme. Obviamente, quem está na área acha que não é suficiente, mas a verdade é que não há ninguém que não queira sempre mais financiamento (voltamos ao "me first"). É claro que ainda estamos longe dos financiamentos dedicados à ciência e à inovação nos países nórdicos, por exemplo, ou mesmo nos EUA. Mas estamos no bom caminho. Aliás, um Eurobarómetro de 2021 sobre o "Conhecimento e atitudes dos cidadãos europeus em relação à ciência e à tecnologia" mostrou um resultado muito curioso: que os cidadãos portugueses são os que mais acreditam no impacto da ciência e da tecnologia na resolução dos problemas que enfrentamos. Quando o José Mariano Gago insistiu que os Laboratórios Associados gastassem uma pequena percentagem do seu "budget" na divulgação do que estavam a fazer, a grande maioria dos cientistas seniores achou um disparate total. Hoje, não há nenhuma instituição em Portugal de prestígio que não faça o esforço para divulgar o que está a fazer e explicar porque é que isso é importante. E isso também é uma mudança drástica. Antigamente viviam todas numas torres de marfim. Os centros Ciência Viva em Portugal contribuíram muito para esta mudança. E os resultados estão à vista neste Eurobarómetro que mencionei, uma notícia que fez o meu dia.

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