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"A Saúde Mental é uma prioridade para o Governo? Não me parece…"

O Dia Mundial do Cérebro assinala-se a 22 de julho

Negócios 20 de Julho de 2023 às 15:42
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#Artigo de opinião de GUSTAVO JESUS
Médico psiquiatra, diretor clínico do PIN, assistente convidado da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. 

"Nas vésperas do Dia Mundial do Cérebro, que se assinala a 22 de julho, é oportuno e pertinente destacar os inúmeros desafios que a população portuguesa - e também os profissionais de saúde - enfrentam na área da saúde mental.

Não há dúvida de que o stresse vivenciado por toda a população no pico da pandemia contribuiu para que o tema "saltasse" para cima da mesa, tendo passado a ser uma preocupação de todos. Assim sendo, naturalmente, as intenções de melhorar o acesso a cuidados de Saúde Mental no Serviço Nacional de Saúde (SNS) passaram a fazer parte do discurso habitual do Governo.

Desde que tomou posse, há quase um ano, o atual ministro da Saúde, Manuel Pizarro, já afirmou diversas vezes que a Saúde Mental é uma prioridade. E não é para menos: estima-se que tenha havido, em 2021, um aumento global de cerca de 30% no número de casos das doenças mentais comuns, nomeadamente das perturbações depressivas e de ansiedade. Isso é particularmente relevante em Portugal, que no último grande estudo epidemiológico, em 2013, já ostentava um segundo lugar entre os países da Europa com maior prevalência de doença mental, atrás apenas da Irlanda do Norte.

Em 2021 (...) quase 90% das consultas de psiquiatria respeitavam os tempos máximos de espera, agora, apenas 50% cumprem GUSTAVO JESUS

Infelizmente, por mais expressas que sejam as intenções de melhorar o acesso aos cuidados de saúde, estas não têm sido suficientes, até porque não se acompanham de medidas proporcionais à dimensão do problema. Ainda que para fazer face a esta situação e concluir a Reforma dos Serviços de Saúde Mental tenha sido constituída, no início de 2022, uma Coordenação Nacional das Políticas de Saúde Mental, esta não tem sido dotada dos meios necessários para responder às necessidades. A verdade é que apesar de ter ao seu dispor 88 milhões de euros do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), destinados à criação de 40 novas equipas comunitárias e à construção de quatro novos serviços de internamento de agudos, é a própria Coordenação que afirma, com preocupação, que o dinheiro é "destinado a paredes e não a recursos humanos".

Ora, a escassez de recursos humanos tem sido precisamente a determinante principal da falta de acesso aos cuidados. Os médicos de família, primeira linha no diagnóstico e tratamento das doenças mentais comuns, chegam a cada vez menos pessoas. A estimativa mais recente é existem 1,7 milhões de portugueses sem médico de família. O baixo número de psicólogos no SNS é limitante das intervenções terapêuticas e o seu reforço parece tardar, tendo o último concurso para colocação de 40 profissionais desta classe demorado 5 anos a ser concluído. Além disso, quando os cuidados de saúde primários necessitam de enviar um doente a um serviço de psiquiatria, só 10% dos casos referenciados consegue obter uma consulta. Por sua vez, o tempo de espera para uma consulta de psiquiatria no SNS tem aumentado muito ao longo dos últimos anos, mesmo tendo havido um ligeiro aumento do número total de médicos psiquiatras. Se em 2021, de acordo com o Relatório Anual de Acesso a Cuidados de Saúde, quase 90% das consultas de psiquiatria respeitavam os tempos máximos de espera, agora, apenas 50% cumprem. De recordar que durante todo este período a Saúde Mental foi uma prioridade para o Governo.

Se para pessoas adultas a precisar de cuidados de saúde mental a situação já é problemática, quando falamos de crianças e jovens  situação é muito mais grave" GUSTAVO JESUS

O problema de recursos humanos não fica por aqui. A contratação de enfermeiros é também cada vez mais difícil, o que, conjuntamente com os outros profissionais de saúde acima referidos, torna complicada a constituição das novas equipas comunitárias, que têm sido a grande aposta da Reforma dos Serviços de Saúde Mental atualmente em curso. E sobre estas novas equipas comunitárias há ainda uma outra questão que é frequentemente ignorada: estas não vão resolver todos os problemas dos Serviços de Saúde Mental, alguns deles atualmente muito prementes. É o caso do número de camas de internamento psiquiátrico de doentes agudos, que neste momento já está abaixo do recomendado pela Direção-Geral da Saúde em algumas regiões do país e claramente abaixo, em todo o território, dos números recomendados pela literatura internacional. Pior do que isso, prevê-se que após a conclusão da atual reforma, o número de camas seja ainda menor. Esta insuficiência de leitos hospitalares traduz-se em taxas de lotação dos serviços de internamento de psiquiatria sistematicamente nos 100%, o que resulta na impossibilidade de internar quem necessita,  com permanência de pessoas com doença mental agudizada em camas nos próprios serviços de urgência, sem condições minimamente adequadas, enquanto aguardam por vaga nos serviços.

Se para pessoas adultas a precisar de cuidados de Saúde Mental a situação já é problemática, quando falamos de crianças e jovens a situação é muito mais grave. O número de pedopsiquiatras no SNS é manifestamente insuficiente para responder às necessidades, tendo o ministro da Saúde reconhecido recentemente que seriam necessários pelo menos 200, quando estão contratados apenas 132. A escassez é transversal às outras classes de profissionais de saúde que prestam cuidados de saúde às crianças e jovens, e o mesmo se pode dizer das estruturas físicas, incluindo as camas de internamento de psiquiatria da infância e adolescência, historicamente em número diminuto. Este cenário é muito preocupante, sobretudo quando vários estudos recentes mostraram o agravamento dos problemas de Saúde Mental entre os portugueses mais jovens.

Para prestar cuidados de saúde mental são precisas pessoas. Só quando o Governo estiver disponível para as manter a trabalhar no SNS poderá afirmar, verdadeiramente, que tem na saúde mental uma prioridade GUSTAVO JESUS

Por tudo isto, é fundamental dotar os executores das reformas na Saúde Mental de recursos proporcionais à dimensão do problema. É o próprio Coordenador Nacional das Políticas de Saúde Mental que afirma que, apesar da doença mental representar 15% da carga da doença em Portugal, a percentagem do orçamento da saúde dedicada a esta área é de apenas 5%.

Mas, para além de dinheiro, é preciso que o desenho das políticas responda às necessidades atuais. Há que investir em estruturas, sim, mas sobretudo na captação de recursos humanos. As novas gerações têm prioridades e desejos diferentes para os seus percursos profissionais do que no passado, tal como tem sido identificado em todas as outras áreas que não a da saúde.

Será que as políticas que funcionaram antes e retiveram profissionais no SNS com base em carreiras e vencimentos alavancados com o pagamento de horas extraordinárias infinitas se mantêm eficazes na retenção de pessoas, quando todo o mercado de trabalho está a evoluir no sentido da flexibilidade e adaptação dos contratos às realidades individuais?

Não haja dúvidas: para prestar cuidados de Saúde Mental são precisas pessoas. Só quando o Governo estiver disponível para mantê-las a trabalhar no SNS poderá afirmar, verdadeiramente, que tem na Saúde Mental uma prioridade."

 

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