Como está o setor segurador em Portugal? De que forma a pandemia impactou a atividade? E quais são os desafios para o futuro? Carlos Maia, Insurance Lead Partner da PwC, respondeu-nos a estas três questões.
Começando pelo estado do setor segurador, continua sólido, com saúde financeira, demonstrando resiliência, não obstante as crises económicas e financeiras que o país atravessou entre 2011 e 2014 e que atravessa, devido à pandemia covid-19. O ano 2020 foi atípico, como está a ser, também, o primeiro trimestre de 2021, como consequência da pandemia, a qual tem afetado de forma transversal as diversas dimensões da nossa sociedade, com um impacto especialmente severo, ao nível da saúde pública.
As necessárias medidas governativas tomadas na Europa para a contenção da crise sanitária, nomeadamente o confinamento obrigatório, tiveram reflexos adversos nas economias europeia e nacional. Um dos grandes pilares que contribuíram para a resiliência demonstrada pelo setor no último ano foi o regime prudencial, de solvência, aplicável à atividade, em vigor desde 2016. Este regime é orientado para a gestão dos riscos específicos a que as companhias de seguros se encontram expostas, em especial, os riscos financeiros e de mercado. A Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF) desempenhou, e desempenha, um papel preponderante na forma como o setor lida com esta crise, implementando medidas de supervisão proativas e direcionadas para a monitorização dos riscos específicos resultantes da situação pandémica.
Impacto da pandemia
Sobre a forma como a pandemia impactou a atividade seguradora em Portugal, numa primeira fase, entre março e maio de 2020, os efeitos sentiram-se de forma significativa ao nível dos mercados financeiros, com impacto direto na solvência das seguradoras, por via da forte desvalorização dos seus ativos mais expressivos, representativos das provisões técnicas. A recuperação e o comportamento subsequente dos mercados durante 2020 permitiram a recuperação dos níveis de solvência das seguradoras e, adicionalmente, a realização de algumas valias financeiras.
Os sucessivos estados de emergência levaram a significativas restrições da livre circulação de pessoas e a diminuições drásticas da atividade económica em todas as áreas de atividade, com impactos na atividade das seguradoras (produção e sinistros). Dados publicados recentemente pela ASF relativos ao exercício de 2020 demonstram, face ao período homólogo (31 de dezembro de 2019), uma quebra global ao nível da produção na ordem dos 18,5% e um aumento dos custos com sinistros de cerca de 15,9%.
Contudo, estes dados globais do setor segurador devem ser analisados separadamente ao nível dos ramos vida e não vida (ramos reais), visto o impacto da pandemia ter sido diferente nestes. Ao nível do ramo vida, verificou-se uma redução da produção total em 34,6%, face ao ano homólogo, com os produtos planos poupança reforma a contribuírem para esta diminuição, com uma redução de 62,4%. A grande incerteza existente ter-se-á refletido, de imediato, numa quebra de contribuições (novas e recorrentes) para produtos financeiros, nomeadamente, planos de poupança. Ainda no ramo vida, a redução verificada na concessão de crédito ao consumo por parte dos bancos traduziu-se, também, numa redução da produção dos seguros de vida associados.
Ao nível dos ramos não vida (reais), face ao período homólogo, existiu um incremento da produção de 3,1% enquanto os sinistros apresentaram uma quebra de 2,3%. O crescimento da produção foi fortemente impactado pelo ramo doença, possivelmente alicerçado no incremento das tarifas para as apólices já existentes em carteira, em função da necessidade sentida pelas seguradoras de melhorarem as respetivas margens técnicas (reduzidas, em anos recentes) e no incremento da taxa de penetração deste seguro, na população. Nos sinistros, a redução da livre circulação de pessoas diminuiu a frequência de acidentes rodoviários. Face ao período homólogo, os custos com sinistros do ramo automóvel tiveram uma diminuição de 11,1%. No ramo de acidentes de trabalho, houve uma redução da atividade e da massa salarial segura, justificando a diminuição dos respetivos custos com sinistros em 9,1%.
Será, contudo, imprudente concluir que os impactos resultantes da pandemia se esgotam naqueles verificados até esta data. O cumprimento do plano de vacinação, a gestão das novas estirpes mais contagiosas do vírus e as medidas de saúde pública e macroeconómicas tomadas até ao fim da pandemia poderão ter implicações no prolongamento ou aparecimento de novos impactos para a atividade seguradora.
O futuro
Em relação aos desafios, o setor segurador tem vários pela frente, o primeiro dos quais, transversal a todos os setores económicos, relativo à definição de um novo modus operandi pós-covid 19. Quais as alterações aos processos de trabalho no pós-pandemia, nomeadamente, no respeitante ao equilíbrio entre trabalho à distância, em casa, e em escritórios, à forma de interagir com parceiros e clientes? A pandemia veio, definitivamente, acelerar a digitalização, o trabalho e as interações com recurso à tecnologia.
Outro desafio relevante prende-se com o ESG (Environmental, Social and Corporate Governance) e a necessidade de desenvolver negócios sustentáveis, com forte enfoque ambiental e social. Há uma preocupação crescente, transversal à economia, em assegurar uma oferta de produtos e serviços compatível com uma economia verde, sustentável.
Os riscos cibernéticos são um outro tema. As seguradoras, devido à quantidade de dados que retêm no decurso da sua atividade e à natureza sensível destes, são potenciais alvos de ciberataques. Este risco, juntamente com a evolução do quadro regulatório na proteção de dados, continuará a obrigar as entidades a investir na prevenção do mesmo.
A evolução digital tem sido um tema cada vez mais presente nos planos estratégicos das companhias de seguros. Esta permite a conceção de produtos inovadores através da análise de informação não estruturada, tarifar case-by-case em minutos através de algoritmos de modelização sofisticados ou agilizar a participação e regularização dos processos de sinistro através da disponibilização ao cliente de ferramentas mais diretas de comunicação dos processos (apps).
Ao nível dos sistemas de previdência, existe ainda um mercado pouco explorado. A esperança média de vida do nosso país tem aumentado ao longo dos últimos anos. Analisando-se as taxas de poupança, verifica-se um nível historicamente baixo, quando comparado com outros países da União Europeia. Esta situação potencia uma oportunidade para as seguradoras do ramo vida, através do complemento, por estas, das pensões de reforma suportadas pelo sistema de segurança social. Esta capacidade de complemento só será possível através de uma maior captação de poupança, que, na ausência de incentivos sociais para tal, passará por uma estratégia bem delineada e eficaz por parte das seguradoras, capaz de suprimir os baixos níveis de literacia financeira e de chamar a atenção da população para a necessidade fundamental de poupar.
Não obstante, o ramo vida tem-se debatido ao longo dos últimos anos com uma estrutura temporal de taxas de juro extremamente baixa. Embora a política monetária expansionista por parte do Banco Central Europeu, em resposta à covid-19, tenha trazido alguma incerteza quanto ao comportamento no curto e médio prazo das taxas de referência, a manutenção de taxas de juro historicamente baixas, a ocorrer, continuará a dificultar a construção de uma oferta atrativa ao nível dos produtos financeiros. A forte concorrência existente no setor ao nível do pricing e as exigências em matéria de solvência, combinados com uma estrutura de taxas de juro baixa, têm implicado um nível de retorno para os acionistas (return on equity) reduzido. Tal facto poderá potenciar a existência de mais concentrações de mercado, através de fusões e aquisições.