Há quase dois anos, o país e o mundo viram-se a braços com o início de uma pandemia para a qual estavam pouco preparados. Nesta batalha diária contra a covid-19, os profissionais de saúde estiveram (e estão) na linha da frente na proteção das pessoas. Os enfermeiros foram uma das classes que deu a cara à luta. Mas, em tempos conturbados, procura-se uma liderança forte, que rompa com o status quo, capaz de desenhar estratégias e apontar caminhos. Neste último caso, o país contou com o vice-almirante Gouveia e Melo para coordenar a task force do Plano de Vacinação contra a Covid-19, numa altura em que todo o processo gerava dúvidas e era alvo de críticas pelos mais diversos motivos.
Na terceira conferência do Fórum Ordens Profissionais, organizada pela Ageas Seguros, o vice-almirante Gouveia e Melo, Ana Rita Cavaco, bastonária da Ordem dos Enfermeiros, e Steven Braekeveldt, CEO do Grupo Ageas Portugal, falaram sobre liderança e os grandes desafios ultrapassados nestes últimos dois anos. “Entrar numa pandemia coxos no número de enfermeiros, face aos restantes países da OCDE” foi um dos maiores obstáculos que o país teve de ultrapassar, na opinião de Ana Rita Cavaco. Pelo lado positivo, a pandemia teve a mais-valia “de ajudar a alterar ligeiramente a perceção que a sociedade tem dos enfermeiros”.
Diz a bastonária da Ordem que as pessoas ainda olham para os enfermeiros “sem perceber a capacidade técnica e científica que foram adquiridas”, mas esta realidade tem vindo a mudar “no último ano e meio”. Confiante nas capacidades da sua classe profissional, Ana Rita Cavaco lembra que “para os 88% de população vacinada em Portugal” muito contribuiu “a estratégia de promoção da vacinação desenvolvida pelos enfermeiros ao longo dos anos”.
Definir estratégias é essencial
Steven Braekeveldt, CEO do Grupo Ageas Portugal, recorda que uma boa liderança implica estratégias de curto e longo prazo. E, neste último caso, “temos um problema endémico de não existir uma visão de longo prazo em Portugal”. Este responsável considera importante, por exemplo, apostar “verdadeiramente na formação de enfermeiros e evitar que estes saiam depois para o estrangeiro” algo só possível “pela definição de uma boa estratégia de longo prazo”. Até porque, no curto prazo, o trabalho “tem vindo a ser bem feito como atesta o sucesso da vacinação, que está muito bem encaminhada”.
Neste particular, muito do mérito se ficará, certamente, a dever ao coordenador da task force. O vice-almirante Gouveia e Melo considera que, como em tudo na vida, “é indispensável que haja um planeamento claro antes de agir”. Gouveia e Melo lembra que “a democracia tem coisas boas e outras menos boas e importa saber encontrar o meio-termo”, não deixando, no entanto, de sublinhar uma forte convicção: “Na minha missão, a coisa mais importante que fiz foi desligar a minha ação de qualquer luta política.”
Portugal: um exemplo na vacinação
O nome do vice-almirante Henrique Gouveia e Melo ficou para sempre ligado ao plano de vacinação contra a covid-19 em Portugal. Em tempo recorde, traçou uma estratégia eficaz e conseguiu vacinar mais de 8 milhões de portugueses colocando Portugal à frente dos países mais vacinados do mundo, com o contributo fundamental dos enfermeiros.
Um bom líder é um bom comunicador
Referido unanimemente como um bom líder, o coordenador da task force considera que apenas aplicou neste campo muito do que apreendeu na sua carreira militar, lembrando que “uma boa liderança não se faz sem uma boa comunicação, seja para dentro da equipa, seja para a população em geral”. A importância da vacinação encabeçou a estratégia, sabendo-se desde sempre que “as vacinas não foram criadas para evitar o contágio, mas antes para reduzir o poder da doença e a probabilidade de morte”. Ao longo do tempo, o vice-almirante Gouveia e Melo falou com várias centenas de profissionais de saúde dando grande destaque aos enfermeiros. Ana Rita Cavaco reconhece e agradece essa atitude, ressalvando que a colaboração entre os dois lados foi sempre “muito positiva”.
E recorda: “Antes da sua entrada, estávamos num cenário de fura-filas que era uma vergonha e nenhum gestor queria saber. Os enfermeiros trabalhavam, mas precisavam de alguém que liderasse e, quando o vice-almirante chegou, tínhamos finalmente uma pessoa que sabia o que era preciso fazer e que mostrou trabalho.” Portugal é um país habituado às vacinas e que aceitou bem todo o processo, uma realidade que em muito se fica a dever ao trabalho dos enfermeiros, considera a sua bastonária, para quem estes “sempre tiveram uma boa estratégia nesta matéria e a vacinação tornou-se uma questão cultural muito por causa do nosso trabalho em campo”.
Associado a esta realidade, Gouveia e Melo explicou as estratégias que seguiu para galvanizar as pessoas num momento tão complicado: “Vestir o camuflado ou aparecer em mangas de camisa passava a ideia certa de que eu era apenas mais um entre centenas de profissionais em campo. Não procurei uma liderança formal, mas algo que me aproximasse das equipas e dos portugueses.”
A verdade é que “visitei muitos centros de vacinação de norte a sul do país e em todos eles encontrei enfermeiros que queriam sempre fazer mais para garantir a vacinação”. Na sociedade civil como na vida militar, “a moral é algo determinante para se ganhar ou perder uma batalha”.
Uma das situações mais comentadas quando assumiu a task force foi a questão dos fura-filas no momento da vacinação. Gouveia e Melo explicou como lidou com o problema: “O facto de não ser político ajudou porque consegui criar uma equipa de dois elementos que reunia diariamente as situações menos corretas e as fazia seguir em forma de denúncia para o IGAS ou a PJ. Em pouco tempo, muito mudou.”
De resto, o trabalho do vice-almirante foi também elogiado pelo CEO do Grupo Ageas Seguros, para quem “foi bom ter alguém de fora deste mundo que conseguisse organizar estruturas e processos e nada melhor do que um militar que foi habituado a fazer isso desde sempre”.
A olhar para o futuro
Em relação ao futuro, e num momento em que Portugal avança já para a terceira dose da vacina, sob o comando de um novo coordenador, importa saber o que pensa Gouveia e Melo do trabalho que está a ser desenvolvido. A liderança é a certa? “Penso que falta coletar dados fiéis sobre a pandemia neste momento. O vírus ataca mais os vacinados ou os não vacinados? E porque morrem os vacinados? Há outras doenças associadas?”, questiona o vice-almirante, para quem “sem estes indicadores é impossível tomar decisões”. Portugal “não pode e nem deve seguir as estratégias de outros países já que copiar a solução dos vizinhos do lado nunca foi opção para nada”, disse ainda.
Público versus privado na saúde
Mas será que, neste campo, os privados podem vir a ser dominantes? Ana Rita Cavaco considera que o cenário ideal “será uma coexistência pacífica”.
A bastonária acrescenta que “as pessoas que têm seguro de saúde podem e devem usar o SNS sempre que considerem isso importante ou recorrer ao privado quando acharem melhor.”
O problema de fundo não está nos seguros de saúde, “que são uma boa opção se for esse o desejo do utente”, mas antes no SNS, que deveria apresentar “infraestruturas e equipamentos mais modernos, o que não acontece.” De resto, “basta lembrar que a despesa pública em saúde, em percentagem do PIB, é das mais baixas”, recorda a bastonária dos enfermeiros.
Começando por recordar que “as emoções são o nosso negócio, aquele em que nos movemos melhor”, Steven Braekeveldt parte de Portugal para lançar um olhar para o resto do mundo e lembrar que “se não houver uma aposta na vacinação globalmente, e um apoio aos países mais pobres, o problema da pandemia vai continuar por vários anos”. A ideia merece o aplauso de Gouveia e Melo e também de Ana Rita Cavaco para quem “a quebra da patente nas vacinas pode ser a solução para ajudar a vacinar os países mais pobres”.
Uma homenagem dupla
No final da terceira conferência do Fórum Ordens Profissionais, organizada pela Ageas Seguros, espaço para uma homenagem dupla em jeito de “Obrigado”. De um lado, Ana Rita Cavaco, bastonária da Ordem dos Enfermeiros atribuiu ao vice-almirante Gouveia e Melo a cédula profissional de membro honorário da Ordem. A bastonária agradeceu o trabalho desenvolvido pelo coordenador da task force e lembrou que “Portugal não precisa de um qualquer D. Sebastião a surgir em dia de nevoeiro”. Os dias têm sido suficientemente “nublosos, nomeadamente nos primeiros meses do processo de vacinação, com centenas de vacinas desviadas do seu caminho”.
Gouveia e Melo veio trazer “uma nova direção ao plano, transmitindo a imagem de um homem que estava mais interessado em ouvir do que falar”. Assegurando que os enfermeiros receberam do coordenador da task force um reconhecimento “que nunca antes tinham tido” Ana Rita Cavaco sublinha, antes de terminar a homenagem, que “ter um coordenador da task force como o vice-almirante é ter 70% dos nossos problemas resolvidos. Os outros 30% os enfermeiros tratam”.
Steven Braekeveldt, CEO do Grupo Ageas Portugal, aproveitou também para agradecer o trabalho desenvolvido de ambos os lados e de milhares de profissionais de saúde lembrando que “a pandemia ainda não terminou e o trabalho, nomeadamente dos enfermeiros e de todos os profissionais de saúde, também não”. A Ageas Seguros entregou a Ana Rita Cavaco e a Gouveia e Melo, pela mão de duas crianças, duas bonsais que, de forma simbólica, “remetem para os cuidados prestados por todos ao longo deste período pandémico”.