Notícia
Verdade ou consequência
Se um amigo lhe confidencia um segredo, é correcto anunciá-lo no Facebook? Só porque é verdade e outros poderão sentir-se curiosos sobre ele, isso não nos confere o direito ético de o revelarmos.
03 de Dezembro de 2010 às 15:40
Certo. E se os segredos revelados estiverem relacionados com comportamentos pouco próprios ou até escandalosos de um governo que elegemos? A polémica relacionada com a organização WikiLeaks está para durar e não está só relacionada com a liberdade de expressão.
Julian Assange, o fundador, em 2006, do Wikileaks, está entre os 100 nomeados para "Pessoa do Ano" da revista "Time". O australiano que está a provocar o talvez maior embaraço de que há memória na história da diplomacia americana, é denominado pela famosa revista como “o informador da era digital”.
Outros há que o apelidam de "bastião da liberdade de informação" ou o cavaleiro da internet, que luta contra as forças negras da censura, da corrupção e do secretismo militar.
Mas também há quem questione a sua ética, nomeadamente jornalística, na medida em que a própria organização online que dirige não possui a transparência que tanto evoca para o seu trabalho. Nos últimos dias, foram muitos os jornalistas que se insurgiram contra a terceira vaga de informação “fugida” que o Wikileaks publicou, invocando a falta de cultura ética que não é consonante com os ideais da liberdade de expressão.
Mas a verdade é que alguns dos maiores jornais do mundo – o "The New York Times", o “Guardian”, o “El Pais”, o “Der Spiegel” e o “Le Monde” – não se escusaram a aproveitar o material oferecido, editando-o e, de acordo com as regras jornalísticas, manifestando o cuidado necessário para comprovar a veracidade da informação e omitindo nomes que poderiam colocar em causa a segurança nacional. Dizem outras fontes que, por exemplo, o “Wall Street Journal” e a CNN se recusaram a fazer qualquer tipo de acordo com o Wikileaks.
Ao longo dos dias, as reacções têm-se multiplicado. Se Hillary Clinton já fez saber que a divulgação não autorizada das centenas de milhar de documentos diplomáticos constitui um ataque aos Estados Unidos, em muitos websites e blogues da Internet defende-se que as últimas revelações não são mais do que meras fofocas e que, no geral, os documentos não contêm mais do que alguns embaraços menores, algumas surpresas, uma enorme quantidade de confirmações já presumidas e nenhum escândalo.
Como se pode ler no website da revista "ForeignPolicy", só quem anda muito distraído é que não sabia das festas de Berlusconi, dos comportamentos inapropriados da família real britânica, da enfermeira loura e voluptuosa que acompanha o general Khadafi, que Robert Mugabe é um megalómano ou ainda que Putin é o Batman e o presidente russo é o Robin.
Comparativamente às passadas fugas de informação que ocorreram em Julho e Outubro de este ano e que divulgaram documentos secretos sobre as guerras no Afeganistão e no Iraque, quase que é possível afirmar que as presentes revelações mais não mostram do que os bastidores da diplomacia internacional com uma lente mais potente. Quase. Pois também existe a possibilidade de virem a ter consequências mais graves.
Contudo, um dos aspectos que mais se discute nos últimos dias é o facto de, tal como os advogados, os médicos, os psiquiatras, os auditores e outros profissionais, jornalistas incluídos, estarem protegidos no que respeita a informação confidencial, se este caso também não se aplica aos demais profissionais que, por acaso, exercem cargos governamentais. E cujo trabalho ao longo de vários anos foi desmascarado. Sim, numa democracia, os cidadãos têm o direito de saber que os políticos que elegeram torturaram prisioneiros, que o Irão faz jogo duplo na guerra do Afeganistão ou outros podres outrora escondidos em guerras de poder. Mas, por outro lado, será que nenhum segredo governamental deverá manter-se secreto?
Tendo em consideração o mandato de captura que a Interpol emitiu para Assange, ao qual se junta mais um emitido pela Suécia, país onde o fundador da Wikileaks é acusado de assédio sexual e violação, esperam-se tempos conturbados para o activista australiano. E, muito provavelmente, mais conturbados ainda para o direito ao secretismo profissional. Afinal, uma nova revolução está em curso e será, sem sombra de dúvida, digitalizada.
Big Brother democrático
Não é de estranhar que as reacções ao trabalho prestado pela Wikileaks sejam completamente distintas. Como escrevia a editora do "Guardian", Heather Brooke, no dia em que o jornal inglês publicou os documentos secretos, para alguns esta ocorrência marca, sem dúvida, uma crise, ao passo que para outros é uma enorme oportunidade. “A tecnologia está a quebrar as barreiras tradicionais sociais do status, das classes, do poder, da riqueza e da geografia – substituindo-as por um ethos de colaboração e transparência”, escreve, acrescentando que muita da raiva relativa à publicação destes documentos não tem propriamente a ver com o seu conteúdo, mas com a audácia de quebrar o que outrora era absolutamente inviolável.
O que acaba por ser irónico é o facto de os Estados Unidos estarem na vanguarda da inovação tecnológica como forma de "impor" a democracia em locais como a China ou o Irão. Aliás, Hillary Clinton tem liderado esta batalha enquanto secretária de Estado norte-americana. Ora, o cidadão Assange pede, neste momento, a sua demissão, a partir de um vídeo gravado não se sabe onde. O que também continua a ser um mistério é esta obsessão de Assange no que respeita a embaraçar, o mais possível, a administração norte-americana. O que significa também que os seus objectivos e os da maioria dos jornalistas não são propriamente os mesmos.
O próprio Assange tem cultivado em seu torno uma imagem de secretismo. Pouco se sabe sobre a sua vida, a não ser que teve uma juventude tumultuosa na Austrália, tendo desenvolvido uma enorme desconfiança face a hierarquias e governos. Quando, em 2006, se preparava para lançar a sua empresa digital com o intuito de fazer uma "exposição de segredos", escreveu uma espécie de manifesto sobre a estrutura das conspirações oficiais e os seus efeitos no bem-estar humano. Como refere o "The New Yorker", Assange citava, nesse manifesto, Maquiavel, Shakespeare e Lord Halifax, e a sua escrita oscilava entre a lucidez e a opacidade. Quatro anos depois, a batalha entre ambos os termos continua. Se não existem dúvidas que uma democracia sai fortalecida quando os seus cidadãos são confrontados com as verdades nuas e cruas levadas a cabo pelos líderes que elegem, só o tempo irá provar se a Wikileaks é a fonte mais credível para publicar essas verdades. É que no caso desta, as fontes de dúvida rodeiam não só o comportamento de Assange e as suas obsessões editoriais, mas também as suas concepções políticas e a sua acuidade.
A verdade é que estamos no limiar de uma nova revolução que, tal como todas as outras, está carregada de medos e incertezas. Até agora, eram os líderes que, com a autoridade que lhes está inerente, controlavam a informação. Agora, a tecnologia permite aos cidadãos desafiarem essa autoridade. Os limites de ambas estão, por enquanto, por definir.
http://www.ver.pt/conteudos/verArtigo.aspx?id=1073&a=Etica
Julian Assange, o fundador, em 2006, do Wikileaks, está entre os 100 nomeados para "Pessoa do Ano" da revista "Time". O australiano que está a provocar o talvez maior embaraço de que há memória na história da diplomacia americana, é denominado pela famosa revista como “o informador da era digital”.
Mas também há quem questione a sua ética, nomeadamente jornalística, na medida em que a própria organização online que dirige não possui a transparência que tanto evoca para o seu trabalho. Nos últimos dias, foram muitos os jornalistas que se insurgiram contra a terceira vaga de informação “fugida” que o Wikileaks publicou, invocando a falta de cultura ética que não é consonante com os ideais da liberdade de expressão.
Mas a verdade é que alguns dos maiores jornais do mundo – o "The New York Times", o “Guardian”, o “El Pais”, o “Der Spiegel” e o “Le Monde” – não se escusaram a aproveitar o material oferecido, editando-o e, de acordo com as regras jornalísticas, manifestando o cuidado necessário para comprovar a veracidade da informação e omitindo nomes que poderiam colocar em causa a segurança nacional. Dizem outras fontes que, por exemplo, o “Wall Street Journal” e a CNN se recusaram a fazer qualquer tipo de acordo com o Wikileaks.
Ao longo dos dias, as reacções têm-se multiplicado. Se Hillary Clinton já fez saber que a divulgação não autorizada das centenas de milhar de documentos diplomáticos constitui um ataque aos Estados Unidos, em muitos websites e blogues da Internet defende-se que as últimas revelações não são mais do que meras fofocas e que, no geral, os documentos não contêm mais do que alguns embaraços menores, algumas surpresas, uma enorme quantidade de confirmações já presumidas e nenhum escândalo.
Como se pode ler no website da revista "ForeignPolicy", só quem anda muito distraído é que não sabia das festas de Berlusconi, dos comportamentos inapropriados da família real britânica, da enfermeira loura e voluptuosa que acompanha o general Khadafi, que Robert Mugabe é um megalómano ou ainda que Putin é o Batman e o presidente russo é o Robin.
Comparativamente às passadas fugas de informação que ocorreram em Julho e Outubro de este ano e que divulgaram documentos secretos sobre as guerras no Afeganistão e no Iraque, quase que é possível afirmar que as presentes revelações mais não mostram do que os bastidores da diplomacia internacional com uma lente mais potente. Quase. Pois também existe a possibilidade de virem a ter consequências mais graves.
Contudo, um dos aspectos que mais se discute nos últimos dias é o facto de, tal como os advogados, os médicos, os psiquiatras, os auditores e outros profissionais, jornalistas incluídos, estarem protegidos no que respeita a informação confidencial, se este caso também não se aplica aos demais profissionais que, por acaso, exercem cargos governamentais. E cujo trabalho ao longo de vários anos foi desmascarado. Sim, numa democracia, os cidadãos têm o direito de saber que os políticos que elegeram torturaram prisioneiros, que o Irão faz jogo duplo na guerra do Afeganistão ou outros podres outrora escondidos em guerras de poder. Mas, por outro lado, será que nenhum segredo governamental deverá manter-se secreto?
Tendo em consideração o mandato de captura que a Interpol emitiu para Assange, ao qual se junta mais um emitido pela Suécia, país onde o fundador da Wikileaks é acusado de assédio sexual e violação, esperam-se tempos conturbados para o activista australiano. E, muito provavelmente, mais conturbados ainda para o direito ao secretismo profissional. Afinal, uma nova revolução está em curso e será, sem sombra de dúvida, digitalizada.
Big Brother democrático
Não é de estranhar que as reacções ao trabalho prestado pela Wikileaks sejam completamente distintas. Como escrevia a editora do "Guardian", Heather Brooke, no dia em que o jornal inglês publicou os documentos secretos, para alguns esta ocorrência marca, sem dúvida, uma crise, ao passo que para outros é uma enorme oportunidade. “A tecnologia está a quebrar as barreiras tradicionais sociais do status, das classes, do poder, da riqueza e da geografia – substituindo-as por um ethos de colaboração e transparência”, escreve, acrescentando que muita da raiva relativa à publicação destes documentos não tem propriamente a ver com o seu conteúdo, mas com a audácia de quebrar o que outrora era absolutamente inviolável.
O que acaba por ser irónico é o facto de os Estados Unidos estarem na vanguarda da inovação tecnológica como forma de "impor" a democracia em locais como a China ou o Irão. Aliás, Hillary Clinton tem liderado esta batalha enquanto secretária de Estado norte-americana. Ora, o cidadão Assange pede, neste momento, a sua demissão, a partir de um vídeo gravado não se sabe onde. O que também continua a ser um mistério é esta obsessão de Assange no que respeita a embaraçar, o mais possível, a administração norte-americana. O que significa também que os seus objectivos e os da maioria dos jornalistas não são propriamente os mesmos.
O próprio Assange tem cultivado em seu torno uma imagem de secretismo. Pouco se sabe sobre a sua vida, a não ser que teve uma juventude tumultuosa na Austrália, tendo desenvolvido uma enorme desconfiança face a hierarquias e governos. Quando, em 2006, se preparava para lançar a sua empresa digital com o intuito de fazer uma "exposição de segredos", escreveu uma espécie de manifesto sobre a estrutura das conspirações oficiais e os seus efeitos no bem-estar humano. Como refere o "The New Yorker", Assange citava, nesse manifesto, Maquiavel, Shakespeare e Lord Halifax, e a sua escrita oscilava entre a lucidez e a opacidade. Quatro anos depois, a batalha entre ambos os termos continua. Se não existem dúvidas que uma democracia sai fortalecida quando os seus cidadãos são confrontados com as verdades nuas e cruas levadas a cabo pelos líderes que elegem, só o tempo irá provar se a Wikileaks é a fonte mais credível para publicar essas verdades. É que no caso desta, as fontes de dúvida rodeiam não só o comportamento de Assange e as suas obsessões editoriais, mas também as suas concepções políticas e a sua acuidade.
A verdade é que estamos no limiar de uma nova revolução que, tal como todas as outras, está carregada de medos e incertezas. Até agora, eram os líderes que, com a autoridade que lhes está inerente, controlavam a informação. Agora, a tecnologia permite aos cidadãos desafiarem essa autoridade. Os limites de ambas estão, por enquanto, por definir.
http://www.ver.pt/conteudos/verArtigo.aspx?id=1073&a=Etica