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Negócios da (e com a) China

"As naturezas dos homens são parecidas; são os seus hábitos que os afastam uns dos outros". A frase é, supostamente, de Confúcio, mas significativamente actual numa época em que a China é actor dominante no palco dos negócios. Perceber os valores culturais deste povo e as suas regras de etiqueta torna-se trabalho de casa obrigatório para quem desejar arriscar a sua sorte no tão esperado Ano do Dragão

27 de Janeiro de 2012 às 15:04
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Foi segunda-feira, 23 de Janeiro, que os chineses deram as boas-vindas a mais um ano novo, desta feita sob os auspícios do Dragão, o simultaneamente mais desejado, mas também mais temido, dos 12 animais que fazem parte do seu calendário lunar. As festividades manter-se-ão até Fevereiro e as previsões astrológicas orientais indicam que o Ano do Dragão será uma excelente altura para fazer reformas, progressos e mudanças. Mais importante ainda é o facto de ser o ano mais recomendável para casar e ter filhos, já que, na sua parte mais positiva, o dragão traz sorte e felicidade, apesar de se temerem, ao mesmo tempo, grandes catástrofes naturais. Na China e com as políticas menos controladoras relativamente ao número de filhos, espera-se que sejam muitas as mulheres a tentar engravidar ou a fazer contas para que os seus rebentos nasçam no ano associado à riqueza e ao poder.

Por cá, empresas como a EDP e como a REN devem estar igualmente a rezar para que a “prole” das suas empresas seja abençoada pelo ícone associado aos grandes imperadores da China e que os negócios e os lucros se multipliquem com a força do Dragão. A multiplicar estão também as corridas aos cursos de mandarim, especialmente por parte dos executivos e empresários que agora ou a breve trecho terão de ter paciência de chinês para mergulharem na arte da grafia dos habitantes do Império do Meio.

Todavia, não basta saber pronunciar algumas frases simpáticas para cair nas boas graças dos negociadores chineses. Uma negociação bem-sucedida está dependente de um conjunto de questões delicadas e que implica a compreensão de valores culturais milenares, em muitos casos absolutamente desconhecidos pelos ocidentais. O desenvolvimento de relações de confiança - o denominado guanxi – constitui a pedra basilar em qualquer tipo de relacionamento, em particular nos que envolvem negócios. Complementar à apreensão dos principais valores culturais que caracterizam a cultura chinesa, as regras de etiqueta são também de importância extrema.

A forma chinesa de “fazer as coisas”
Antes da China se abrir à privatização, os negócios apenas existiam sob a forma de empresas detidas pelo Estado. E estas eram (e ainda são, em muitos casos) geridas por pessoas com passados e relacionamentos politicamente fortes, normalmente ligadas por laços familiares a alguém no governo.

Este tipo de estrutura organizacional fechada não concede aos seus colaboradores oportunidade alguma para se envolverem em qualquer processo de tomada de decisão. Na maioria das vezes, a liderança é baseada numa ética empresarial e em princípios de conduta fortes, que constitui o mais importante factor na tomada de decisão e na motivação dos colaboradores, apesar do apoio financeiro governamental disponível significar que este tipo de empresas não precisava de grandes conhecimentos do próprio negócio ou do mercado onde este operava. O sucesso tinha apenas como base a criação e manutenção de um relacionamento saudável com as pessoas “certas”, o qual garantia, de forma efectiva, o apoio governamental.

Com o boom das joint ventures que teve início em finais da década de 1980 e no início dos anos 90, os investidores estrangeiros começaram a enviar os seus próprios gestores para interagir com a cultura de negócios destas empresas. E são demasiadas as histórias que se contam nas quais os gestores ocidentais passavam a vida em intermináveis banquetes, a beberem grandes quantidade álcool com os oficiais do governo – uma forma de fazer a ponte entre as duas culturas – sem terem a mínima ideia do que se estava a passar.

Com o passar do tempo, chineses e ocidentais começaram a preocupar-se mais em compreender os aspectos culturais que os definiam. Todavia, a orgulhosa China continua a não querer seguir os passos das multinacionais estrangeiras e a defender que se deve seguir a “forma chinesa de se fazer as coisas”. Esta estrutura mental é igualmente “ajudada” pelas vantagens óbvias da inesgotável força de trabalho chinesa a par do sentimento, profundamente enraizado nos executivos chineses, de que a história do seu país é única e, por isso mesmo, impermeável aos valores ocidentais. Apesar de não ser exactamente assim, principalmente para quem ocupa actualmente um lugar tão importante na economia global, a verdade é que existe realmente uma “forma chinesa de fazer as coisas”. Razão pela qual o VER tenta, neste artigo, desmistificar algumas das questões culturais mais prementes deste povo, com o objectivo de proporcionar uma melhor compreensão das diferenças entre os valores chineses e ocidentais.

Individualismo versus colectivismo
Aquilo que melhor define a “forma chinesa de fazer as coisas” tem como base uma cultura colectivista em oposição ao individualismo que caracteriza as sociedades ocidentais.

Com base nas investigações do psicólogo social Geert Hofstede, um dos mais proeminentes estudiosos na área da cultura organizacional, as pessoas pertencentes a culturas individualistas enfatizam o seu sucesso e feitos alcançados na carreira ou na vida pessoal, tendo sempre como objectivo alcançar uma melhor posição.

Especialmente nos Estados Unidos, mas também na Europa, a luta por uma carreira de sucesso e a subida na escada hierárquica constituem os objectivos mais comuns para a maioria das pessoas. O que conta é a ascensão, não importando quem é que fica para trás. Nos negócios, a tendência é sempre a de melhorar a rede de contactos existente e retirar o maior valor possível desta, não com o intuito de estabelecer relacionamentos de amizade duradouros, mas sim de os manter de uma forma calculista. Os colaboradores, por seu turno, lutam pela defesa dos seus interesses e pela autopromoção a todo o custo.

Nas culturas colectivistas asiáticas, nas quais sobressai a China, empresas com uma filosofia menos colectivista são vistas como frias e sem redes efectivas de apoio. As culturas colectivistas enfatizam o valor do grupo e pensam mais em termos de “nós”. A harmonia e a lealdade no interior da empresa são extremamente importantes, lutando-se pela sua manutenção e evitando-se qualquer tipo de confronto. Na China, está absolutamente fora de questão discordar da opinião de alguém em público. Tal discordância poderá ser manifestada, mas num ambiente privado, pois este protege a pessoa em causa de “perder a face”, um dos valores mais fortemente defendidos pelos chineses. Ou seja, neste tipo de cultura, o confronto directo deve sempre ser evitado. E são utilizadas expressões e frases adequadas que indicam um desacordo ou um sentimento negativo para se substituir o simples “não”, pois tal significaria destruir a harmonia do grupo.

O relacionamento existente entre patrão e empregados, e entre este e os parceiros de negócio, tem como base a confiança, a harmonia e um profundo conhecimento dos valores morais defendidos pelos chineses.

E a riqueza da empresa e dos grupos nela integrados é muito mais importante do que a riqueza individual. David Yaou-Fai Ho, um cientista social de Hong Kong, citado num dos livros de Hofstede, define “perder a face” da seguinte forma: “a face é perdida quando o indivíduo, seja através das suas acções ou dos actos perpetrados por pessoas estreitamente relacionadas com ele, falha em acompanhar os requisitos exigidos inerentes à virtude da posição social que ocupa”. Mais ainda, nas empresas com culturas colectivistas, existe compreensão e mobilização para ajudar os colaboradores com performances mais fracas, algo que é muito difícil de encontrar no mundo hiper-competitivo das empresas ocidentais.

De acordo com Ruxiang Jiang, responsável pela consultora Zion, sedeada em Beijing e opinante na Harvard Business Review, “ uma cultura colectiva é óptima para se construir rapidamente uma empresa do nada mas, por demasiadas vezes, as empresas com abordagens colectivas continuam a enfraquecer os colaboradores individuais e a desvalorizar os seus contributos intelectuais”.

Dando como exemplo Ren Zhengfei, o fundador e presidente da Huawei, um dos mais reconhecidos e influentes empreendedores chineses e responsável pela denominada “cultura de lobo” que caracteriza o gigante das telecomunicações, as aspirações individuais são explicitamente subvertidas relativamente às necessidades da organização, na sua perseguição implacável dos leões empresariais ocidentais. Tal como conta o consultor chinês, nos primeiros tempos da empresa, os colaboradores da área de I&D mantinham colchões enrolados por baixo das suas secretárias devido às longas jornadas de trabalho. E o fundador da Huawei parece estar disposto a manter este tipo de cultura empresarial indefinidamente. Na sua corrida contra outras multinacionais, afirmou: “as pessoas da Huawei, em particular os líderes, estão destinadas a trabalhar arduamente ao longo de toda a sua vida e a devotar e sofrer mais do que os outros”. Este “sofrimento” é comum à grande maioria das empresas chinesas, apesar de serem muitos os analistas e consultores que alertam para o facto de os empreendedores chineses não poderem continuar a serem iludidos pela ideia de que, para serem bem-sucedidos a longo prazo na economia global, são suficientes as práticas que enfatizam apenas e somente o valor do trabalho árduo.

Um lugar para todos e todos no seu lugar
Assimilar a denominada ética confucionista é extremamente importante para ir mais além na compreensão da estrutura mental e cultural chinesa. Ainda hoje, os ensinamentos de Confúcio, a personalidade mais influente da história da China, continuam a ter uma profunda preponderância na sociedade chinesa moderna. Os valores profundamente enraizados de respeito pela hierarquia, pela orientação de grupo, pelos mais velhos e pela tradição, provenientes do complexo sistema social e político baseado na ética confucionista que elege ainda a piedade filial, o parentesco, a lealdade e a justiça como valores supremos, ajudam a explicar a “forma como os chineses fazem negócios”. E também o grande fosso existente entre estes valores e os perseguidos pelas sociedades ocidentais. Todavia, é imprescindível que as diferenças culturais existentes entre a China e o Ocidente sejam apreendidas por ambas as culturas, numa perspectiva construtiva e nunca em termos comparativos de que “ a nossa cultura é melhor que a vossa”. Vejamos as principais diferenças a ter em conta:

Estrutura social. Na China, a estrutura social é extremamente formal e hierárquica. Todos sabem qual o seu lugar e que regras deverão ser cumpridas. Não existe, como no Ocidente, o cruzamento habitual de fronteiras estabelecidas. São quase inexistentes as linhas sociais passíveis de serem transpostas. E o desconhecimento destas regras pode causar sérios problemas nos negócios, quando a cultura visitante não se comporta de acordo com as regras.

Confronto e conflito. A abordagem directa nas reuniões de negócios, tão comum no Ocidente, é impensável na China. Como já foi anteriormente citado, o confronto directo ou a mera discussão de questões discordantes devem ser evitados. E pouco interessa “falar a verdade”, pois o respeito e a honra relativamente à pessoa em causa são superiores a tudo. Evidenciar-se, tentando levar avante o seu ponto de vista, é muito mal visto pelos executivos chineses, bem como a questão do tempo. De acordo com Carla Kearns, fundadora da TLI – The Mandarin School, sedeada em Toronto, e que desenvolveu cursos de formação intercultural para executivos, por muito complexa que seja a agenda de um ocidental, fazer uma reunião de negócios sem guardar tempo para sair com os parceiros de negócios chineses, é meio caminho andado para o fracasso da parceria. E se os ocidentais pensam que já investiram dinheiro suficiente na dita viagem de negócios, não se podem esquecer que o recurso mais valorizado é exactamente o tempo, pois é assim que se constrói a confiança e se desenvolve os relacionamentos (o guanxi), muitas vezes através da socialização em jantares e “copos”. Uma outra armadilha comum aos ocidentais é colocarem todas as suas dúvidas e problemas de uma vez só em cima da mesa. Mais uma vez, os chineses só permitem a discussão de duas questões de cada vez, porque qualquer crítica ou culpa fará parecê-los malvistos em frente aos seus pares. Mais ainda, os executivos ocidentais nunca devem assumir que as suas práticas de negócio são bem-sucedidas caso não encontrem objecção por parte dos seus interlocutores chineses. Os chineses são ensinados a obedecer à autoridade e amplamente dissuadidos a não discordarem dos seus superiores, o que significa que o silêncio não significa o habitual “quem cala, consente”.

A “face” e a reputação. A reputação do indivíduo é extremamente importante na China. Se uma acção tiver como consequência a humilhação ou algum tipo de ruína reputacional, é simplesmente evitada. E se a vergonha se instala, um chinês tudo fará para a neutralizar, mesmo que para isso tenha de sacrificar o seu emprego ou posição. No Ocidente, a questão da reputação é muito mais fluida e o que interessa é o resultado final (o sucesso) independentemente de tudo o resto.

A importância da socialização. Se está a planear fazer negócios com chineses, prepare-se para socializar em grande escala. Os negócios tornam-se secundários enquanto os parceiros aprendem a conhecerem-se melhor. E se este período de socialização for responsável pelo adiamento de um contrato, a espera é perfeitamente aceitável desde que o tempo alocado para o conhecimento do parceiro for considerado adequado. No Ocidente, pelo contrário, e seguindo a velha máxima de que “tempo é dinheiro”, o convívio entre potenciais parceiros pode existir, mas nunca de forma tão profunda ou morosa. O negócio é que é importante, sacrificando-se o tempo de socialização.

A humildade. É uma das mais reverenciadas virtudes na China. Ao contrário do Ocidente, os feitos empresariais ou pessoais são relegados para segundo plano, ao passo que os executivos ocidentais são conhecidos por evidenciarem os seus êxitos. Mais delicada ainda é a questão de, no mundo ocidental da hiper-velocidade, a humildade ser considerada como um sinal de fraqueza. Apesar de não ser das características mais faladas quando se abordam as diferenças culturais entre China e Ocidente, este é um assunto que pode prejudicar irremediavelmente os relacionamentos. Assim, comentários demasiado elogiosos sobre as aventuras empresariais ocidentais devem ser evitados na sua presença.

O significado do tempo. Querer ver o negócio fechado está no topo da lista de prioridades dos executivos ocidentais. Sobretudo para os americanos e para os povos do norte, sem esquecer a famosa pontualidade britânica, chegar a horas a reuniões e respeitar prazos é parte integrante da sua cultura de negócios. Mas o sentido que os chineses dão ao tempo não obedece exactamente a uma marcha silenciosa de ponteiros de relógio. Não existe preocupação alguma, por exemplo, se a reunião acabar mais tarde do que o que estava determinado. O mesmo serve para os prazos. Se existe um compromisso para que um relatório esteja terminado a uma sexta-feira, o executivo ocidental esperará que este lhe seja entregue nesse mesmo dia. Para os chineses, esperar algum tempo adicional não traz mal ao seu mundo.

Numa altura em que o domínio chinês parece estar na ordem do dia, fazer um esforço para seguir regras culturais básicas poderá ajudar, em muito, o futuro das parcerias de negócios. E, naturalmente, não são apenas os ocidentais que devem fazer o trabalho de casa. Os executivos chineses também se importam com as normas vigentes nas outras culturas, ou não vivêssemos nós num mundo globalizado.

A longo prazo, pode ser que seja possível que os princípios universais de negócios prevaleçam. Até lá, o esforço deverá ser feito por ambas as partes.


Leia ainda: Mini-guia de etiqueta chinesa

http://www.ver.pt/conteudos/verArtigo.aspx?id=1366&a=Geral

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