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Um Aparente Paradoxo: Concessões e Concorrência
Falar de concessões e de concorrência constitui, à primeira vista, um paradoxo. O domínio das concessões apresenta-se, tradicionalmente, como um espaço em que o Estado é soberano e não se pauta pelas regras do mercado.
1. Falar de concessões e de concorrência constitui, à primeira vista, um paradoxo. O domínio das concessões apresenta-se, tradicionalmente, como um espaço em que o Estado é soberano e não se pauta pelas regras do mercado.
A não sujeição ao princípio da concorrência pode começar logo na fase da escolha do concessionário. São bem conhecidos, quer ao nível da Administração Central, quer nas próprias regiões autónomas, casos de atribuição de concessões sem procedimento concursal e, muitas vezes, ope legis. Por vezes, por outro lado, o Estado exige que o concessionário seja uma empresa pública (designadamente, uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos ou uma sociedade de capitais maioritariamente públicos). Ou seja, há casos em que o Estado impõe que a gestão empresarial de um serviço, obra ou bem públicos seja feita necessariamente por uma entidade do sector empresarial público em vez de poder ser exercida por uma empresa puramente privada.
A eventual fuga à concorrência não se esgota necessariamente no momento inicial de escolha dos concessionários. Problemas podem também surgir, durante a vigência da concessão, nas relações – especialmente financeiras – entre o Estado e as empresas concessionárias, sendo muitas vezes incerta a fronteira entre a atribuição de indemnizações compensatórias e os auxílios do Estado verdadeiros e próprios.
O mesmo se diga em relação à fase de extinção da concessão. Basta lembrar a tentação para, no final do prazo da concessão, invocando a relação pessoal que entretanto se estabeleceu entre concedente e concessionário, a Administração proceder à renovação ou à prorrogação da concessão por ajuste directo. Ou, na mesma linha, mas seguindo uma via alternativa, o afastamento das regras de uma economia de mercado é realizado, por vezes, através do estabelecimento de prazos de concessão muito longos. Ambas as soluções conduzem ao mesmo resultado: a subtracção da actividade concedida, por longos e, porventura, excessivos anos, à livre concorrência.
2. Aparentemente, há boas razões para que o princípio da concorrência possa ser afastado do campo das concessões.
A relação de concessão é tradicionalmente configurada como uma relação intuitu personae, assentando numa relação de confiança entre o concedente e o concessionário. E, de facto, no contexto de uma colaboração normalmente duradoura, a entidade concessionária é chamada a participar na própria tarefa de realização de uma obra pública, de gestão de um serviço público ou de exploração de um bem público. A relação de confiança é, pois, absolutamente fundamental e justifica, numa primeira aproximação, que as entidades públicas possam escolher livremente o concessionário.
A força aparente desta argumentação explica, porventura, a própria cumplicidade inicial do Direito Comunitário neste domínio. Com efeito, numa primeira fase, o legislador comunitário não se preocupou em alargar o regime da contratação pública aos contratos de concessão. As primeiras directivas – do início dos anos setenta – tinham apenas em vista os contratos de fornecimento, os contratos de empreitada e os contratos de prestação de serviços. E, se a partir do final da década de oitenta, as directivas passaram a sujeitar as concessões de obras públicas ao princípio da concorrência a nível comunitário, a verdade é que, mesmo hoje, após a aprovação da mais recente Directiva 2004/18/CE, continua a não se prever algo de semelhante para as concessões de serviço público ou dominiais.
3. Em rigor, porém, a argumentação tradicional para justificar a não aplicação do princípio da concorrência às concessões – de clara proveniência francesa – não é procedente. Ela traduz apenas uma tentativa de subtrair um domínio importante da actividade económica – e, em face dos fenómenos do project finance e das parcerias público-privadas, crescentemente importante – às regras do mercado.
Desde logo, porque a existência de uma relação intuitu personae não é apanágio exclusivo da relação de concessão, assumindo igualmente um papel de relevo noutros contratos duradouros celebrados pela Administração, há muito sujeitos à concorrência.
Sobretudo, porque, a própria escolha do concessionário de acordo com um regime concorrencial oferece, em geral, maiores garantias de que o concorrente escolhido, segundo critérios objectivos, pode assegurar melhor a adequada prossecução do interesse público, que constitui, como é sabido, o verdadeiro objectivo que deve comandar a actuação do Estado. Pelo contrário, uma total ou muito ampla liberdade de escolha do concessionário, à margem da concorrência, pode facilmente abrir a porta a situações nebulosas de favorecimentos de certas entidades e de escolha de soluções menos vantajosas. Naturalmente, a subtracção à concorrência pode até ser feita apenas com o objectivo de favorecer uma determinada empresa portuguesa em detrimento de empresas estrangeiras. Mas, por princípio, numa economia de mercado aberta, o apoio às empresas privadas portuguesas deve ser feito por outras vias e não à custa da contratualização de soluções menos adequadas à satisfação das necessidades colectivas.
4. Isto mesmo foi reconhecido, nos últimos anos, quer pela Comissão Europeia, quer pelo Tribunal de Justiça.
Na verdade, em 2000, uma Comunicação interpretativa sobre as concessões em direito comunitário, da autoria da Comissão, sublinhou que não havia razões para não aplicar às concessões, entre outros, os princípios comunitários gerais da não-discriminação, da igualdade de tratamento e da transparência. A Comissão não contestou a possibilidade de o Estado, dentro de certos limites, atribuir um direito de exclusivo a uma determinada empresa. O que ela recusou, em rigor, foi o princípio segundo o qual o Estado podia escolher livremente o concessionário, isto é, à margem de qualquer preocupação concorrencial.
O Tribunal de Justiça, em Acórdão de 7 de Dezembro de 2000 proferido no âmbito do chamado caso Telaustria, confirmou este entendimento. O referido aresto reconheceu, no fundo, que, mesmo no âmbito das concessões de serviço público, não obstante o silêncio das directivas sobre contratação pública, o Estado não podia, em regra, por força do Tratado, escolher o concessionário por ajuste directo.
5. O princípio da concorrência não é imposto apenas pelo Direito Comunitário. É certo que, em Portugal, os passos que o próprio legislador ordinário tem dado na abertura da economia à concorrência, designadamente no campo da contratação pública, são muitas vezes o resultado de imposições comunitárias. A verdade, porém, é que constitui uma visão deformada ou míope perspectivar a concorrência apenas nessa dimensão. Efectivamente, bem vistas as coisas, é a própria Constituição que, eliminado o sentido socialista ou colectivista inicialmente plasmado no texto de 1976, eleva hoje o princípio da concorrência a princípio nuclear da actividade económica.
Na realidade, por força da própria Constituição, as empresas privadas devem coexistir com empresas do sector público e com elas concorrerem. Ao Estado incumbe especificamente garantir a equilibrada concorrência entre as empresas e assegurar o funcionamento eficiente dos mercados. Em particular, ainda por expresso imperativo constitucional, o Estado deve contrariar quaisquer formas de organização monopolistas, bem como reprimir os abusos de posição dominante ou outras práticas lesivas do interesse geral.
Naturalmente, não significa isto que o princípio da concorrência deva ser absolutizado. A admissibilidade constitucional da vedação de sectores básicos da economia à actividade de empresas privadas ou análogas confirma que o mercado e a concorrência não estão sempre assegurados. E, em diversos domínios, como por exemplo, na área da comunicação social (onde a própria Constituição impõe a existência e o funcionamento de um serviço público de rádio e de televisão), a cabal prossecução da missão de interesse público que cumpre ao Estado assegurar postula desvios à lógica do mercado e da concorrência.
É fundamental, todavia, não esquecer que as derrogações a uma economia de mercado devem ser excepcionais – e limitar-se ao estritamente necessário... –, devendo ser fundamentadas em razões ponderosas de interesse público. Por isso, mesmo no campo das concessões, é a própria Constituição que não permite que o princípio da concorrência seja pura e simplesmente postergado.
6. Felizmente, a tendência mais recente revela que, em Portugal, o princípio da concorrência está também a invadir o terreno das concessões. O Código do Procedimento Administrativo proclama, desde 1991, o princípio da sujeição dos procedimentos de celebração de contratos de concessão em geral a um regime concursal. E, se é certo que o referido diploma não exclui que uma lei-medida afaste tal regime, a verdade é que o princípio da concorrência tem sido aplicado às novas concessões, desde os sistemas municipais de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, até às parcerias público-privadas no domínio da saúde, passando pelas concessões no sector portuário e em diversos outros domínios.
É importante, a bem da economia nacional, que se prossiga pelo mesmo caminho. Um caminho em que se assegure a isenção e a equidistância do Estado (ou de outras entidades públicas) na escolha dos concessionários. Um caminho em que, em vez de se apostar no favorecimento de interesses instalados, se invista decisivamente na qualidade e na inovação daqueles que se apresentem, em cada momento, como os melhores. A tão falada reforma do Estado passa também por aqui.