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O formato do poder em 2024

Numa análise prospetiva para 2024 o Project Syndicate desafiou sete figuras, entre as aquais académicos, investigadores e antigos governantes, a dizerem se concordavam com a seguinte observação: "O próximo ano confirmará se o mundo se movimenta no sentido de uma maior multipolaridade ou do "não-alinhamento". As respostas são aquelas que pode ler de seguida.

Adekeye Adebajo
Investigador sénior no Centro para a Promoção da Investigação da Universidade de Pretória.


Duplicidade de critérios irá enfraquecer apoio global à Ucrânia

No ano que vem, não veremos uma maior multipolaridade, mas sim uma maior bipolaridade. A China substituiu a Rússia no papel de principal concorrente da América, numa nova guerra fria que tem menos a ver com ideologia e mais com mercados e tecnologia. A economia chinesa de 18 biliões de dólares já ultrapassou o conjunto dos 27 países da União Europeia, e a China é o maior parceiro comercial de mais de 120 países. A sua Nova Rota da Seda continua a construir infraestruturas à volta do globo, e o Banco Asiático de Investimento em Infraestruturas (com uma capitalização de 100 mil milhões de dólares) tem 109 membros e representa 80% da população mundial. Em janeiro, o grupo dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), dominado pela China, alargar-se-á para incluir a Argentina, a Etiópia, o Egito, o Irão, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos.

Muitos destes países do Sul Global recusaram condenar a invasão da Ucrânia pela Rússia. Agora, procuram reforçar o contingente de 120 membros do Movimento dos Não-Alinhados, que emergiu em 1955 da Conferência de Bandung, onde participaram governos asiáticos e africanos. Envolvidos numa estratégia de evitar serem envolvidos em conflitos entre superpotências (à época, entre americanos e soviéticos), os membros do MNA abstiveram-se de celebrar acordos coletivos de defesa com qualquer um dos lados. Esta arma dos fracos concedeu dinamismo a esforços para reforço da autonomia regional e para fortalecimento de instituições de governação global como as Nações Unidas, e poderá voltar a fazê-lo.

Finalmente, e no momento em que esta resposta foi redigida, o cerco e o bombardeamento de Gaza por Israel em resposta ao ataque do Hamas (que matou 1.400 israelitas) provocou mais de 9.000 mortes e 1,4 milhões de desalojados entre os palestinianos. O apoio ocidental a Israel porá a nu a duplicidade de critérios que reside no âmago do sistema internacional, enfraquecendo ainda mais o apoio global à Ucrânia em 2024.


Ian Bremmer
Fundador e presidente do Eurasia Group e da GZERO Media.


Não-alinhamento será a vaga de futuro

Sim, a tendência internacional no sentido do "não-alinhamento" continuará durante 2024. Mas a "multipolaridade" é outra questão, que depende da arena competitiva que considerarmos.

Em 2024, o não-alinhamento significará, para muitos países, reconhecer que a tomada inequívoca de posições na rivalidade crescente entre os Estados Unidos e a China seja uma proposta perdedora. Alguns governos, especialmente nos países situados perto da China ou da Rússia, encararão os EUA como um parceiro indispensável à sua segurança. Mas a parceria comercial com a China continua a ser essencial ao crescimento futuro.

A "multipolaridade" é uma questão mais complexa. Na esfera da segurança, ainda vivemos num mundo unipolar. Só os EUA conseguem projetar o seu poder em todas as regiões do mundo. A influência militar da China está a crescer, mas - e sobretudo - não é testada numa guerra importante há mais de quatro décadas. As forças convencionais da Rússia já estavam esvaziadas, mesmo antes da sua invasão em larga escala da Ucrânia ter provocado danos geracionais na sua capacidade militar. E a Europa ainda depende dos EUA, assim como os aliados asiáticos dos EUA.

Na arena económica, contudo, vivemos sem dúvida num mundo multipolar, onde a América, a China, a Europa e a Índia são intervenientes essenciais para o restabelecimento da estabilidade e do dinamismo da economia global. Depois temos a esfera digital, onde o poder dos governos é limitado pelo poder das empresas tecnológicas que produzem os progressos que os responsáveis políticos se esforçam por compreender. Aqui, encontramos um mundo "tecnopolar" emergente, onde os governos e as empresas tecnológicas partilharão o poder no futuro previsível.

Reunamos estas tendências, e o não-alinhamento será a vaga do futuro.


Stephen G. Brooks
Professor de Governação no Dartmouth College e professor convidado na Universidade de Estocolmo.


Sistema permanece mais próximo da unipolaridade

A multipolaridade é um mito, como William Wohlforth e eu defendemos recentemente na Foreign Affairs (que também publicou um simpósio de respostas ao nosso artigo). Os Estados Unidos são realmente hoje menos dominantes que na década de 1990, quando estavam à frente do que qualquer estado se encontrara antes em termos militares, económicos e tecnológicos. Mas um mundo multipolar é um mundo com três ou mais potências de dimensão aproximadamente comparável no topo da competição internacional. Quem poderia ocupar hoje essa posição? De todos os países que poderiam presumivelmente ficar em terceiro lugar - a França, a Alemanha, a Índia, o Japão, a Rússia ou o Reino Unido - nenhum pode sequer ser considerado comparável aos EUA ou à China.

Não só a multipolaridade é um mito, como o sistema permanece mais próximo da unipolaridade do que da bipolaridade da Guerra Fria. Apesar de a China estar em ascensão, demorará muito tempo até que a maior distância de sempre entre potências mundiais se anule. A China ascendeu de forma muito significativa no domínio económico (apesar de menos do que é comummente assumido, já que inflaciona significativamente os seus dados sobre o PIB), mas fez muito menos por diminuir as disparidades de poder noutras áreas. Ainda está muito atrás dos EUA em termos tecnológicos. Um próximo livro meu (em coautoria) demonstra que as empresas dos EUA detém uma quota de 53% nos lucros dos setores de alta tecnologia, e isso verificar-se-á durante muito tempo, deixando os EUA como a única superpotência que consegue comandar os recursos globais comuns.


Paula J. Dobriansky
Antiga subsecretária de estado dos EUA para os assuntos globais (2001-09), é membro sénior do Centro Belfer para a Ciência e os Assuntos Internacionais da Harvard Kennedy School.


Sul Global evitará envolver-se em disputas entre grandes potências

A invasão da Ucrânia pela Rússia desencadeou alterações geopolíticas significativas. A guerra, combinada com o crescimento das tensões EUA-China, unificou a comunidade transatlântica e motivou muitos governos da região do Indo-Pacífico a reforçar as suas defesas e a proteger as suas cadeias de aprovisionamento. Os mesmos desenvolvimentos também encorajaram líderes políticos no Sul Global a alinhar pela "opcionalidade", tomando decisões baseadas nos seus interesses nacionais, enquanto fazem os possíveis por não se envolver em disputas entre grandes potências.

As mudanças geopolíticas a decorrer na atualidade incluem alinhamentos nacionais novos ou reforçados - desde o fortalecimento dos laços entre a Rússia e a China, o Irão e a Coreia do Norte, até ao envolvimento da Austrália com a Índia e a Indonésia, e com os Estados Unidos e o Reino Unido no âmbito da AUKUS. Apesar de o Diálogo Quadrilateral sobre Segurança entre a Austrália, a Índia, o Japão e os EUA (iniciado em 2007) se ter tornado mais ambicioso, outras potências têm-se esforçado por contrariar novos alinhamentos emergentes. Muitos encaram o mais recente ataque do Hamas a Israel como uma tentativa para bloquear a normalização israelo-saudita, que poderia ter ameaçado não só o Hamas como também os seus patrocinadores no Irão.

A atabalhoada retirada da América do Afeganistão, em 2021, contribuiu para esta evolução no sistema internacional, ao comprometer as perceções da credibilidade, fiabilidade e eficácia dos EUA. Isso, por sua vez, fez com que alguns líderes (como o Presidente russo Vladimir Putin) reavaliassem os custos de seguir políticas contrárias aos interesses dos EUA. Estas mudanças de preferências e de perspetiva facilitaram não só uma nova violência, mas também relacionamentos novos ou diferentes, à medida que os aliados, os rivais e os inimigos da América reajustaram os seus objetivos. De forma semelhante, o vacilante esforço de guerra da Rússia na Ucrânia parece ter criado um ambiente mais permissivo para a conquista de Nagorno-Karabakh pelo Azerbaijão. Os novos conflitos e o desejo de evitar ser atraído para conflitos entre os EUA, a Rússia e a China continuarão a impulsionar a nova multipolaridade e o regresso do não-alinhamento.


Jorge Heine
Professor investigador na Pardee School of Global Studies da Universidade de Boston.


Não-alinhamento continuará a sua trajetória ascendente

Em 2024, a rivalidade entre as grandes potências continuará, assim como a ascensão do não-alinhamento, mesmo que hoje numa nova encarnação: o não-alinhamento ativo (NAA). Originalmente desencadeado pela pressão americana e chinesa para que os países latino-americanos tomassem partido na sua nascente guerra fria, o NAA espalha-se agora por África e pela Ásia. Colhe inspiração no Movimento dos Não-Alinhados do passado, mas adapta-a às realidades do novo século.

O NAA não deve ser confundido com neutralidade nem com equidistância. Em vez disso, é um conceito dinâmico que permite aos países defenderem posições variáveis dependendo da questão em apreço. Enquanto doutrina de política externa, significa priorizar os interesses dos próprios países e não sucumbir à pressão das grandes potências. Exige competências analíticas altamente desenvolvidas, para que cada questão possa ser avaliada de acordo com os seus méritos próprios.

A ascensão do NAA tornou-se especialmente evidente no rescaldo da invasão da Ucrânia pela Rússia, com muitos países do Sul Global a recusarem tomar partido. Este desenvolvimento mostra que a principal clivagem no mundo de hoje não se verifica entre a democracia e a autocracia, mas sim entre o Norte Global e o Sul Global. A expansão do NAA está estreitamente associada à ascensão do Sul Global enquanto força significativa nos assuntos mundiais, de que a recente expansão dos BRICS serve como Prova A. O seu melhor exemplo prático é a política externa do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva durante o ano de 2023.


Yu Jie
Investigadora sénior sobre a China no Programa Ásia-Pacífico da Chatham House.


Multipolaridade é um trunfo cada vez maior para a China

Concordo. 2024 deverá ser outro ano conturbado em termos geopolíticos, com a miríade de crises e de eleições que se preveem. Mas também proporciona oportunidades às potências não-ocidentais que defendam um papel mais relevante nos assuntos globais para a "neutralidade" e o "não-alinhamento". A maior parte destes países, como a China, baseia as suas prioridades de política externa em cálculos rígidos de interesses económicos ou políticos, enquanto o Ocidente, em termos coletivos, acentua a importância de se "pensar da mesma forma".

Este ponto da situação criará indubitavelmente uma maior multipolaridade. O pragmatismo exigirá a muitos países que escolham um lado, dependendo da questão em apreço. Apesar de a "neutralidade" continuar a ser impensável na perspetiva dos membros do G7 - quer se refiram ao relacionamento com a China ou à guerra entre Israel e o Hamas - muitas potências não-Ocidentais considerá-la-ão essencial na condução dos seus negócios estrangeiros.

Por seu turno, a China continuará a deslocar o resto do mundo no sentido de uma maior multipolaridade, já que a considera como a melhor forma de gerir o seu impasse perante os Estados Unidos. Apesar de a posição inicial da China sobre a guerra da Rússia na Ucrânia ter agravado as suas relações com muitos países ocidentais, as atitudes no Ocidente têm-se diferenciado desde então. Existe hoje uma estranha mistura de receio que a China apoie militarmente o Kremlin, mas também que limite a temeridade nuclear do Presidente Vladimir Putin.

Como muitos países do globo não encaram as atuais crises geopolíticas em simples termos de preto e branco, a China poderá descobrir que a sua preferência pela multipolaridade é um trunfo cada vez maior.


Ana Palacio
Antiga ministra dos Negócios Estrangeiros de Espanha, é professora convidada na Universidade de Georgetown.


Momento atual é uma sopa de letras de novas coligações

Se os eventos recentes servirem de indicação, o mundo está realmente a apressar-se no sentido de um realinhamento. A guerra da Rússia na Ucrânia, o desalojamento étnico em Nagorno-Karabakh, a série de golpes em África e a crise no Médio Oriente são todos sinais de perturbação da ordem mundial emergida do pós-II Guerra Mundial. Estes eventos não são excecionais nem são crises isoladas. Com os Estados Unidos de certa forma ausentes e menos assertivos que no passado, os países e os intervenientes não-estatais sentem-se encorajados a assumir riscos e a aproveitar oportunidades que evitavam anteriormente.

O momento atual caracteriza-se por uma sopa de letras de novas coligações que se formaram como resposta às mutáveis dinâmicas do poder global. A expansão dos BRICS+ é só um exemplo entre muitos. Com as potências médias a disputarem cada vez mais a influência global, entrámos numa era de desordem que durará até que se solidifique uma nova configuração de relações internacionais.

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