"Só se consegue uma sociedade mais inclusiva se trabalharmos para alterar a situação de cada pessoa que está na rua", comentou Susete Santos, diretora de Alojamento Social da Fundação Assistência Médica Internacional (AMI) no debate sobre a realidade das pessoas em situação de sem-abrigo em Portugal que ocorreu na 11.ª edição do Prémio AGIR, promovida pela REN. Segundo a diretora da AMI, lidar com esta realidade implica mais do que apenas um conceito: é essencial um acompanhamento personalizado e uma equipa multidisciplinar. "Temos a preocupação de garantir que a resposta seja sempre muito personalizada", acrescentou.
Questionada sobre os sucessos da abordagem da AMI, Susete Santos foi perentória: "Não estamos satisfeitos porque a equipa é insatisfeita por natureza. Enquanto continuarmos a ter casos que entram no abrigo e não saem com um processo de autonomização para integrarem plenamente a sociedade, não há satisfação". Apesar das dificuldades, há histórias de sucesso que motivam a equipa a continuar a lutar contra a pobreza e a exclusão social. No entanto, a diretora destacou que a autonomia das pessoas acolhidas ainda enfrenta barreiras significativas, principalmente na transição para habitação permanente. "Para evitar recaídas, é preciso que a sociedade se envolva e abrace o fenómeno", reforçou.
O problema da escassez de vagas também foi abordado. "A capacidade máxima está sempre preenchida. Sempre que alguém sai para a autonomização, a vaga é ocupada imediatamente", explicou. A lista de espera, segundo Susete Santos, tem uma média de 50 pessoas e os critérios de admissão são rigorosos, uma vez que "todos os casos são urgentes".
O crescimento do fenómeno e as lacunas estruturais
Cristina Merendeiro, da Associação Crescer, confirmou o aumento da população sem-abrigo em Lisboa, refletindo a realidade a nível nacional. "Portugal tem feito um bom caminho. No entanto, maioritariamente, em respostas à crise, temos soluções imediatas de emergência, mas são poucas as respostas sustentáveis", apontou. A coordenadora salientou a importância da implementação de estratégias como o ‘Housing First’, que prevê habitação individualizada com o suporte de equipas técnicas especializadas e que tem "registado resultados extraordinários na erradicação deste fenómeno". Outra área que "realmente temos de pensar a sério" é o da empregabilidade, diz a especialista. "Estamos a fazer este caminho. Infelizmente, tardiamente", lamentou.
Sobre as dificuldades, Cristina Merendeiro destacou a ausência de políticas eficazes de habitação. "O problema fundamental é a falta de habitação. Parece óbvio, mas a verdade é que a situação dos sem-abrigo nunca foi pensada com esse foco", referiu. O foco tem igualmente de estar, nas palavras de Cristina Merendeiro, no que apelidou de "fatores individuais", como problemas de saúde mental e consumo de substâncias, sem esquecer as falhas estruturais. "Temos altas hospitalares não programadas, saídas de prisões sem articulação, tudo isto conduz as pessoas à rua", alertou.
Outro problema identificado foi a mudança no perfil da população sem-abrigo. "O número aumentou e estamos a ver famílias monoparentais, pessoas que trabalham a partir da rua e até quem se encontra nesta situação pela primeira vez", explicou. "Há um mito que as pessoas que estão na rua não querem sair desta condição, que não querem trabalhar. Mitos completos. Nós, os que trabalhamos no terreno, podemos garantir que as pessoas querem, têm muita vontade de viver numa casa, têm muita vontade de trabalhar e, portanto, é nisto que temos de apostar".
Aumento de migrantes
A falta de alojamento acessível continua a ser uma das maiores dificuldades, corroborou Ana Salão, diretora operacional do CASA - Centro de Apoio ao Sem Abrigo. "Se as pessoas permanecem muito tempo num alojamento temporário, o processo estagna e não há resposta para quem realmente precisa", frisou. A diretora operacional chamou ainda a atenção para a insuficiência de soluções na área da saúde mental, havendo "muitas pessoas que permanecem internadas em centros hospitalares por falta de resposta em cuidados continuados", referiu, alertando também para o aumento da presença de migrantes no Porto a necessitar de apoio.
O trabalho da associação passa, além do apoio direto, pela prevenção da exclusão social. "Trabalhamos na primeira linha, em parceria com a Câmara do Porto, fornecendo mais de 550 refeições diárias nos restaurantes solidários e atuando no terreno com equipas de rua", explicou. Além disso, o CASA desenvolve projetos como o SOS Casa, um apoio de emergência para evitar que famílias em risco cheguem à condição de sem-abrigo. "O novo perfil de pessoas que nos procuram inclui muitas famílias monoparentais e numerosas, que, desde a pandemia, passaram a precisar de apoio urgente", relatou.
Uma realidade transversal à Europa
Nuno Jardim, diretor-geral do CASA e representante em Portugal da FEANTSA – Federação Europeia de Organizações Nacionais que Trabalha com Pessoas em Situação de Sem-Abrigo, ampliou a reflexão para um contexto europeu. "O perfil da população sem-abrigo é semelhante em toda a Europa. Infelizmente, os problemas de consumos, saúde mental e dificuldades habitacionais são transversais", destacou. No entanto, reconheceu que Portugal está bem posicionado no combate à pobreza e exclusão social, graças à Estratégia Nacional de Combate à Pobreza. "Temos o guião, o conhecimento e sabemos os problemas que existem", afirmou.
Apesar dos esforços, Nuno Jardim acredita que a perceção pública sobre a realidade dos sem-abrigo ainda está distorcida. "A população em geral não tem noção da complexidade deste problema. Há um trabalho de sensibilização que ainda precisa de ser feito", alertou.
A crise da habitação como entrave
"O acesso a uma casa segura é praticamente impossível para quem tem baixos rendimentos", disse Sandra Arouca, da Santa Casa da Misericórdia do Porto, que também abordou a questão da habitação como um dos maiores entraves à reintegração das pessoas sem-abrigo, explicando que mesmo empregos estáveis não garantem condições dignas de vida. "Os salários baixos não permitem arrendar uma casa a preços que rondam os 800 ou 900 euros. O mercado está completamente inacessível", alertou.
A responsável também denunciou casos extremos de exploração, como pedidos de 300 ou 400 euros para partilhar um quarto ou, em situações mais desumanas, para partilhar uma cama. "Isto acontece e tem de ser denunciado", frisou.
A Santa Casa acompanha atualmente cerca de 100 pessoas em situação de sem-abrigo no Porto, num protocolo com o Câmara Municipal. A especialista garante que pelo menos nesta geografia, todas as pessoas nesta condição têm um técnico-gestor, seja do município seja da Segurança Social. "Independentemente do seu estatuto, todas têm acesso a acompanhamento", assegurou. No entanto, alertou para as dificuldades acrescidas dos migrantes. "Se estiverem em situação irregular, o governo português criou uma estrutura, o AIMA, que intervém nestas situações. Mas há respostas que prestamos independentemente da sua condição de regular ou irregular no país, como balneários e refeitórios", concluiu.
Como nota de fecho, parece haver ferramentas e conhecimento disponíveis, sendo que o desafio reside na lentidão das respostas e na falta de investimento estrutural. Os intervenientes enfatizam que o compromisso das organizações, municípios e sociedade civil é essencial, mas que sem políticas eficazes e integradas, o problema permanecerá.