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O território minado da família

Valério Romão retoma, neste seu novo romance, a sua obsessão muito pessoal: a fragmentação da família. E faz isso com um registo muito seguro e atraente.

30 de Março de 2018 às 17:00
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Valério Romão
Cair para Dentro
Abysmo, 210 páginas, 2018

A família foi durante séculos a unidade central das nossas sociedades. Mas nas últimas décadas foi-se fragmentando, seja de forma clara, seja de forma nebulosa e escondida. Este tema tem sido uma obsessão para Valério Romão nos seus livros, desde a sua estreia com "Autismo", em 2012. A família é um território minado e, à sua volta, ele tem vindo a construir uma série de narrativas que acabam por nos entrelaçar nesse mundo cheio de mistérios e ilusões.

Este novo "Cair para Dentro" é quase o epílogo de uma trilogia, sobretudo porque nos coloca novamente dentro de um universo desconfortável e confuso, onde parece haver ainda muito para dizer. Aqui encontramos uma mãe e uma filha que, ao longo de muito tempo, vão tentando dirimir os seus conflitos latentes, sem que pareça ser possível qualquer paz. Há uma ferida de início: o pai abandonou a mãe e esta ficou com a filha. Logo aqui surge-nos o terrorismo da culpa, que dilacera famílias. O pai desejava um filho e não uma filha e assim, no meio raio de visão, há uma culpada: a mãe. Isso é a desculpa para o abandono a que as sujeita.

Vamos percebendo o contexto: "Soube que ele tinha ido para Setúbal, que tinha deixado de beber graças aos serviços de uma daquelas igrejas brasileiras nas quais a bondade de deus é convertida num imposto sobre o rendimento a colectar mensalmente, soube também que se tinha juntado com uma mulher quase da idade dele, e que ela lhe dera dois filhos homens, como ele sempre havia querido, e que um deles, muito pequeno ainda, já desmontava e voltava a montar tudo quanto tivesse parafusos, para gáudio do pai e desespero da mãe, incapaz de compreender ou festejar aquela alquimia de chave de fendas pela qual as coisas perdiam o seu uso, convertendo-se em molas e engrenagens avulsas, savana de chapa verde onde floresciam arbustos cabeçudos com pernas de ferro."

Esta lógica de se poder montar e desmontar uma relação é metafórica, claro. Porque nem tudo se pode fazer assim na vida: esta não é um Lego. E isso é visível na relação da mãe com a filha, sempre tensa e triturante. Falta aqui sobretudo amor e é isso que acaba por ser central em todo o universo que Valério Romão constrói, seja neste livro, seja nos anteriores.

A busca do amor é algo muito doloroso. E dificilmente se encontra, porque ele parece estar sempre escondido por múltiplos picos de uma rosa. Estamos aqui condenados a uma espécie de viagem no labirinto de um Minotauro qualquer: as famílias tentam descobrir onde está o amor, que seria o cimento da sua existência, mas ele desaparece entre as mãos como areia. Estamos todos perdidos nesta procura da memória da família que seria perfeita. E no meio desta guerrilha sem quartel acabamos por perder o que seria mais desejável: o amor.



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