Notícia
A guerra civil global
Há uma guerra civil global de que ainda não temos verdadeira noção? Pankaj Mishra, conhecido ensaísta e autor do estimulante e incontornável “Age of Anger”, acredita que sim. Uma obra para marcar o debate sobre os nossos dias de desconforto político e social.
De onde vem toda a raiva que vemos irromper neste mundo que alguns diziam ser o que assistiu ao fim da história, um mundo onde a paz da democracia liberal e da globalização económica derrotara todos os extremismos?
É sobre isso que teoriza Pankaj Mishra, um ensaísta muito conhecido pela sua presença na imprensa internacional, naquele que é um dos mais fascinantes livros editados nos últimos tempos: "Age of Anger". Para ele o Brexit e a eleição de Donald Trump são os expoentes daquilo a que Mishra chama "uma guerra civil global" onde os que se sentem desconfortáveis com a "modernidade" buscam vingança. Mas, mais do que se focar nos nossos dias e nas múltiplas explicações que se tentam encontrar para o terrorismo ou para o nacionalismo radical, o autor vai ao passado, onde encontra semelhanças com os dias de hoje. As nossas convulsões globais não diferem da de outras revoluções, começando com a Revolução Industrial do século XIX.
O "ressentimento" nasceu na Europa de então, motivada pelas condições económicas modernas, mas hoje é ainda mais vasta devido à globalização de produtos e de desejos. Mishra não é o primeiro a identificar a "raiva" como o espírito do nosso tempo, mas ele vai mais longe e busca as suas origens no Iluminismo, que iniciou o período da hegemonia do capitalismo industrial ocidental no mundo, um processo que terminou na globalização, algo que movimentos de "ressentimento", como o Brexit, pretendem pôr em causa.
Mishra coloca aqui uma questão extremamente interessante: esta dinâmica da Revolução Industrial tornou-se também hegemónica no pensamento de líderes mundiais que pareciam professar ideologias diferentes (Atatürk na Turquia, Nehru na Índia, Mao Tsé-Tung na China, Sukarno na Indonésia ou Nasser no Egipto). Que continuou com os seus sucessores. Escreve ele: "Um desejo unia todos estes regimes ideologicamente diferentes.
"Os modernizadores socialistas e capitalistas visavam um crescimento exponencial do número de pessoas que pudessem ter carros, casas, bens electrónicos e gadjets, dirigindo a indústria do turismo e do luxo para todo o mundo". Ou seja, o imperialismo económico impôs ideologias e instituições em sociedades que tinham desenvolvido ao longo de vários séculos as suas próprias lógicas políticas e estruturas sociais e, com isto, conseguiu também tirar-lhes os seus recursos para seguirem um desenvolvimento ao tipo ocidental. Todos imitando o "centro do poder", já que, ao mesmo tempo que chegava a indústria ocidental, chegavam também um conjunto de valores, com a sua ética de aquisição material e realização pessoal. Assim, este individualismo acabaria por beneficiar uns poucos, mas não a maioria. O "ressentimento" global tinha aí as suas raízes mais longínquas.
Mishra não é meigo. Mas essencial para a sua história é o período do Iluminismo. Ele identifica Rousseau como o primeiro porta-voz dos que não tinham nada, identificando e zurzindo a moral corrupta que circulava nos ideais de "progresso" e "modernidade". E cruza isso com as ideias que floresciam na pujante literatura europeia da época e que acabaram também por seduzir muitos dos principais pensadores e ideólogos da época. A Europa é de resto central em "Age of Anger", e por isso também a centralidade da questão é colocada numa "guerra civil" entre as elites e os "ressentidos" e não entre Estados-nação ou fés religiosas. Mishra, de resto, não tem paciência para os teóricos da "guerra das civilizações" e recorda a propósito o atentado de Oklahoma, feito por Timothy McVeigh, relembrando que ele, na prisão, se tornou amigo de Ramzi Ahmed Yousef, o bombista do World Trade Center, anos depois. Vinham de mundos diferentes (o extremisto branco e o "ressentimento" islâmico) mas encontraram muitos pontos comuns entre eles. Mishra junta-os a Mikhail Bakunin, um dos mais notáveis ideólogos anarquistas do século XIX, que identificava a liberdade com uma "deliciosa paixão pela destruição". Em muitos dos casos identificados por Mishra os enraivecidos eram sobretudo vítimas da modernidade.
Mishra lembra os ocidentais da violenta transição para a modernidade (nos séculos XVIII, XIX e XX) e que muito do que hoje se vê no mundo é o resultado disso. Ou seja, estamos a assistir a uma repetição da nossa história, sobretudo daquela que teve a ver com o período chamado de ouro da globalização, entre finais do século XIX e a I Guerra Mundial. Onde também a Europa (e não só) sentiram os efeitos do terrorismo indiscriminado. As rupturas nas sociedades de todo o mundo abriram espaço para esta tentativa de regresso às origens e aí nasce, florescente, o nacionalismo. Afinal, Mishra começou a escrever o seu livro em 2014, quando viu a tomada do poder na Índia pelos nacionalistas hindus.
E vê que muitos dos que pareciam ter garantido uma migalha na luta global rebelaram-se contra o sonho moderno. O autor recorda que muitos dos recrutas do Estado Islâmico vieram da Tunísia, o mais ocidentalizado dos países muçulmanos da baía do Mediterrâneo. E lembra que muitos dos mais atrozes autores de atentados terroristas tinham muito pouca ligação ao Islão ou educação religiosa. Para Mishra o modelo de racionalismo ocidental - que promete igualdade, oportunidade e dignidade para todos, depois falha a cumprir a sua promessa. E esta promessa de modernidade afecta também os privilegiados, porque ela é vazia de conteúdo.
A sociedade comercial e consumista ocidental não consegue providenciar aos indivíduos uma verdadeira alternativa ao que foi destruído (o comprometimento tradicional com a família, a fé e a comunidade), mesmo nos países ocidentais. E aí regressa a Rousseau, cujo modelo ideal de sociedade era Esparta. Mas Mishra foca-se também noutros pensadores europeus que costumam ser negligenciados, como o poeta italiano Gabriele D'Annunzio, Bakunin ou Kropotkin. Como escreve: "Biliões dos mais pobres do mundo estão presos num pesadelo de darwinismo social". E é sobre isto que Pankaj Mishra elabora uma tese extremamente estimulante. Porque estes são tempos em que procuramos explicações para dúvidas enormes que se colocam defronte de nós.
É sobre isso que teoriza Pankaj Mishra, um ensaísta muito conhecido pela sua presença na imprensa internacional, naquele que é um dos mais fascinantes livros editados nos últimos tempos: "Age of Anger". Para ele o Brexit e a eleição de Donald Trump são os expoentes daquilo a que Mishra chama "uma guerra civil global" onde os que se sentem desconfortáveis com a "modernidade" buscam vingança. Mas, mais do que se focar nos nossos dias e nas múltiplas explicações que se tentam encontrar para o terrorismo ou para o nacionalismo radical, o autor vai ao passado, onde encontra semelhanças com os dias de hoje. As nossas convulsões globais não diferem da de outras revoluções, começando com a Revolução Industrial do século XIX.
Mishra coloca aqui uma questão extremamente interessante: esta dinâmica da Revolução Industrial tornou-se também hegemónica no pensamento de líderes mundiais que pareciam professar ideologias diferentes (Atatürk na Turquia, Nehru na Índia, Mao Tsé-Tung na China, Sukarno na Indonésia ou Nasser no Egipto). Que continuou com os seus sucessores. Escreve ele: "Um desejo unia todos estes regimes ideologicamente diferentes.
"Os modernizadores socialistas e capitalistas visavam um crescimento exponencial do número de pessoas que pudessem ter carros, casas, bens electrónicos e gadjets, dirigindo a indústria do turismo e do luxo para todo o mundo". Ou seja, o imperialismo económico impôs ideologias e instituições em sociedades que tinham desenvolvido ao longo de vários séculos as suas próprias lógicas políticas e estruturas sociais e, com isto, conseguiu também tirar-lhes os seus recursos para seguirem um desenvolvimento ao tipo ocidental. Todos imitando o "centro do poder", já que, ao mesmo tempo que chegava a indústria ocidental, chegavam também um conjunto de valores, com a sua ética de aquisição material e realização pessoal. Assim, este individualismo acabaria por beneficiar uns poucos, mas não a maioria. O "ressentimento" global tinha aí as suas raízes mais longínquas.
Mishra não é meigo. Mas essencial para a sua história é o período do Iluminismo. Ele identifica Rousseau como o primeiro porta-voz dos que não tinham nada, identificando e zurzindo a moral corrupta que circulava nos ideais de "progresso" e "modernidade". E cruza isso com as ideias que floresciam na pujante literatura europeia da época e que acabaram também por seduzir muitos dos principais pensadores e ideólogos da época. A Europa é de resto central em "Age of Anger", e por isso também a centralidade da questão é colocada numa "guerra civil" entre as elites e os "ressentidos" e não entre Estados-nação ou fés religiosas. Mishra, de resto, não tem paciência para os teóricos da "guerra das civilizações" e recorda a propósito o atentado de Oklahoma, feito por Timothy McVeigh, relembrando que ele, na prisão, se tornou amigo de Ramzi Ahmed Yousef, o bombista do World Trade Center, anos depois. Vinham de mundos diferentes (o extremisto branco e o "ressentimento" islâmico) mas encontraram muitos pontos comuns entre eles. Mishra junta-os a Mikhail Bakunin, um dos mais notáveis ideólogos anarquistas do século XIX, que identificava a liberdade com uma "deliciosa paixão pela destruição". Em muitos dos casos identificados por Mishra os enraivecidos eram sobretudo vítimas da modernidade.
Mishra lembra os ocidentais da violenta transição para a modernidade (nos séculos XVIII, XIX e XX) e que muito do que hoje se vê no mundo é o resultado disso. Ou seja, estamos a assistir a uma repetição da nossa história, sobretudo daquela que teve a ver com o período chamado de ouro da globalização, entre finais do século XIX e a I Guerra Mundial. Onde também a Europa (e não só) sentiram os efeitos do terrorismo indiscriminado. As rupturas nas sociedades de todo o mundo abriram espaço para esta tentativa de regresso às origens e aí nasce, florescente, o nacionalismo. Afinal, Mishra começou a escrever o seu livro em 2014, quando viu a tomada do poder na Índia pelos nacionalistas hindus.
E vê que muitos dos que pareciam ter garantido uma migalha na luta global rebelaram-se contra o sonho moderno. O autor recorda que muitos dos recrutas do Estado Islâmico vieram da Tunísia, o mais ocidentalizado dos países muçulmanos da baía do Mediterrâneo. E lembra que muitos dos mais atrozes autores de atentados terroristas tinham muito pouca ligação ao Islão ou educação religiosa. Para Mishra o modelo de racionalismo ocidental - que promete igualdade, oportunidade e dignidade para todos, depois falha a cumprir a sua promessa. E esta promessa de modernidade afecta também os privilegiados, porque ela é vazia de conteúdo.
A sociedade comercial e consumista ocidental não consegue providenciar aos indivíduos uma verdadeira alternativa ao que foi destruído (o comprometimento tradicional com a família, a fé e a comunidade), mesmo nos países ocidentais. E aí regressa a Rousseau, cujo modelo ideal de sociedade era Esparta. Mas Mishra foca-se também noutros pensadores europeus que costumam ser negligenciados, como o poeta italiano Gabriele D'Annunzio, Bakunin ou Kropotkin. Como escreve: "Biliões dos mais pobres do mundo estão presos num pesadelo de darwinismo social". E é sobre isto que Pankaj Mishra elabora uma tese extremamente estimulante. Porque estes são tempos em que procuramos explicações para dúvidas enormes que se colocam defronte de nós.