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Quantos prisioneiros tem a cor de uma mulher

A história guarda a narrativa de um imperador preso às mãos dos portugueses. O preto e branco, frente a frente. Jamais lado a lado. O tempo parece insistir em não alterar posições. As feridas do passado infectam cada dia um pouco mais. Quando teremos maturidade para trata-las devidamente?

Estelle Valente
10 de Novembro de 2018 às 19:00
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Netos de Gungunhana: O último trabalho do Teatro O Bando está em cena no São Luiz Teatro Municipal, em Lisboa, até 11 de Novembro. Encenado por João Brites, segue no início do próximo ano para Brasília e Maputo.


Não importa a cor da cobra. O veneno é o mesmo". Esta é uma das dezenas de frases sonantes, diríamos autênticos ensinamentos, que marcam o novo trabalho d'O Bando, "Os Netos de Gungunhana". Quando a cobra tem forma humana, a cor acaba por importar - e muito.

Partindo das 1.200 páginas que constituem a trilogia "As Areias do Imperador", de Mia Couto, João Brites retorna à figura de Gungunhana, o último imperador de um território que hoje corresponde ao sul de Moçambique. Foi capturado por soldados portugueses em 1895 e trazido para a metrópole como troféu, como prova da suposta superioridade branca.

"Os Netos de Gungunhana" arranca em formato de conferência académica. Os descendentes do imperador são chamados a contar a sua versão da história - e há muitas, não tivesse Gungunhana tido mais de 300 mulheres. Os trabalhos arrancam em inglês, evocando novas formas de colonialismo e de uniformização (através da língua). A cada interveniente, essa obrigação colapsa mais um pouco. O inglês começa a tornar-se saturante, desnecessário, um autêntico colete-de-forças. A diversidade da língua portuguesa acaba por ganhar.

Neste palco, a história é contada com vários sotaques. São vozes de artistas portugueses, brasileiros, moçambicanos e angolanos. A prova de que não há um português hegemónico, puro, limpo - não há nem pode haver, porque a língua, enquanto instrumento de poder, também ela é moldável. "Os pretos não podem ter sotaque", ouve-se a determinada altura. Mas podem ter voz. E têm voz nesta narrativa.

O trabalho sobre a raça, sobre o branco e o preto, não se faz directamente sobre o tom da pele do elenco. Esse contraste está antes nas fitas de tecido utilizadas na cabeça, como coroas, acentuando em simultâneo as diferenças e as proximidades. O branco pode ser preto, o preto pode ser branco - e esse choque entre a realidade e a personagem é belo, enriquecedor, inesperado. Somos todos colocados ao mesmo nível, mesmo o público, com as suas fitas invisíveis.

Com o avançar da peça, a história acaba por se concentrar em Imani, uma das mulheres do imperador, distinguível pela sua capacidade de traduzir, de estabelecer pontes linguísticas entre os dois povos. Rita Couto, como Imani, oferece uma interpretação sólida e robusta dentro da fragilidade que exige a própria personagem, num desempenho que surpreende e agarra até ao fim. Com essa força feminina que acaba por se estender ao restante elenco, de algum modo, o último trabalho d'O Bando convoca uma outra minoria marginalizada, as próprias mulheres: tão capazes de definir a própria História mas a quem raras vezes é dada a oportunidade de escrevê-la. Por isso, em palco, elas recusam ser vítimas. Antes mostram-se como guerreiras, como resistentes.

"Os Netos de Gungunhana" é uma peça que, apesar da presença constante do texto, se poderia classificar como económica: transmite muito mais nas entrelinhas do que nas palavras vindas diretamente do palco. Nesses silêncios, nessas intenções, percebemos que o Velho Continente virou depressa demais a página nas questões coloniais. Fechámos depressa demais o capítulo, sem com ele aprender, sem diagnosticar que feridas ficaram por sarar do outro lado. Por isso, a história de Gungunhana vem lembrar-nos que, em África, os mortos nunca morrem realmente.

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