São perto de metade do total de arquitectos em Portugal, nos últimos 20 anos foram responsáveis por 51,5% das novas entradas na Ordem dos Arquitetos e por 53,1% das licenciaturas e estão em clara maioria nas universidades - este ano, e apenas considerando a Universidade de Coimbra, cerca de 80% dos novos alunos de Arquitectura são mulheres. No entanto, continua a reinar sobre as mulheres arquitectas e o seu trabalho um véu de invisibilidade. São menos reconhecidas, têm menos presença pública, ganham menos, acreditam ter menos possibilidades de progressão da carreira e são alvo de assédio. Por tudo isto, a Ordem dos Arquitectos, através da sua Secção Regional do Centro, organizou a exposição "Arquitectas da Nossa Casa", patente até janeiro na Casa das Caldeiras, em Coimbra, e na Roca Lisboa Gallery, no primeiro trimestre de 2025.
"As mulheres correspondem a 46% dos membros da Ordem e, no entanto, esse trabalho não tem a mesma visibilidade. Esta iniciativa parte de uma coisa tão simples e despretensiosa como esta: onde estão as nossas colegas?", explica Liliana Moniz, vice-presidente do Conselho Diretivo Regional da Ordem e uma das organizadoras.
A mostra reúne trabalhos de 69 arquitetas, abrangendo áreas tão diversas como o projeto, a ilustração, a joalharia ou a investigação, numa diversidade ímpar. "O único critério era ser mulher e membro ativo da Ordem. As pessoas puderam mostrar o seu trabalho e a atividade que desenvolvem tendo como base a arquitetura", explica Cláudia Santos Silva, arquiteta e coorganizadora da exposição, que lamenta que os critérios de escolha levantem questões. "Serem só mulheres é um critério. Podia ser só gente de 30 anos. É um critério com um fim específico, que noutros casos não seria criticado", assume a arquitecta para quem há, na sociedade, a tendência para desvalorizar o problema. "Está tudo ‘tão bem’! Em média, ‘só’ ganhamos menos 30% do que um homem, mas haverá sempre alguém que se lembra de uma mulher que ganha muito mais", aponta.
Há também muito menos mulheres distinguidas - no recente anúncio dos Prémios Valmor dos anos 2018, 2019 e 2020 entre nove categorias, entre prémios e menções honrosas, apenas uma mulher foi distinguida - e menos arquitectas a participar em conferências e eventos públicos. "É impossível que não haja qualidade. Fomos às mesmas escolas, fomos selecionados pelos mesmos critérios e é estranho que isso não seja percetível", refere Cláudia Santos Silva.
Uma das justificações apontadas para esta realidade é a falta participação das próprias arquitectas. Mas também isso deve ser analisado, diz Liliana Moniz. "Temos de perceber porque é que ocorre", defende. As longas horas de trabalho e a precariedade associadas ao trabalho de ateliê acabam por ter reflexo em escolhas tanto ao nível da profissão - levando à opção por áreas mais ‘previsíveis’ como o ensino ou a investigação - como da vida pessoal. "Durante a campanha para as últimas eleições da Ordem, vimos que há uma faixa muito grande de jovens arquitectas que não têm filhos. Não será só pelas dificuldades laborais, que não são exclusivos da arquitectura. A verdade é que temos casos de colegas que perderam o emprego no dia em que disseram que estavam grávidas", acusa a responsável da Ordem.
Desigualdade tem de deixar de ser um não assunto
Esta é uma realidade que vai além do panorama nacional. Despina Stratigakos, historiadora da arquitectura e autora do livro "Onde estão as mulheres arquitectas?", fala de um "clube de rapazes", referindo-se ao prémio Pritzker que, desde 1979, distinguiu apenas seis mulheres. E mesmo quando o fez - e Stratigakos lembra o caso de Zaha Hadid, em 2004 - as vencedoras foram alvo de um escrutínio muito mais cruel do que os seus colegas homens.
"Lá fora - em Inglaterra, em França, na Alemanha - isto não é um não assunto. Cá temos uma certa tendência para dizer ‘não discriminamos ninguém’… É um tema extenso e passa por questões ligadas à menopausa, ao conforto no trabalho, à flexibilidade no trabalho", defende Cláudia Santos Silva. A mudança, diz, passa também por "reconhecer os papéis diferentes" que as mulheres têm na sociedade (nomeadamente a maternidade). "Às vezes é preciso reajustar determinadas questões, sem que isso seja uma menorização, sem que isso seja um defeito", propõe, ressalvando que a exposição e o ciclo de debates não foram organizados para as arquictetas "se queixarem". "Tivemos um dia de celebração, de reconhecimento, em que tivemos o privilégio de dar lugar a colegas que estão a fazer coisas muito, muito interessantes cujo trabalho não é valorizado ou é valorizado em nichos muito pequeninos", diz.
Intertit: Promover a equidade
Patrícia Santos Pedrosa, vice-presidente da associação Mulheres na Arquitectura, ONG criada em 2017 para promover a equidade na arquitectura, aponta a complexidade autoral como outra das razões para a falta de visibilidade. "Há o estereótipo da profissão que passa a imagem do arquitecto, homem, como uma pessoa genial, que trabalha sofredor e sozinho. Mas, para qualquer projeto, para qualquer obra, é necessário um trabalho de uma equipa que inclui arquitectos, engenheiros, geógrafos", diz. E é nesta equipa que, muitas das vezes, o trabalho das mulheres arquitectas é feito e se dissolve em termos autorais. Um problema reforçado pelo facto de "a pirâmide das mulheres na arquitetura ser de base larga e topo fino", o que as deixa muitas vezes longe dos lugares de topo e mais facilmente expostas ao duplo preconceito do "sexismo associado ao idadismo".
As mulheres jovens ou recém-chegadas à profissão estão longe de ser as únicas afetadas por este problema, afirma Patrícia Santos Pedrosa, que dá como o exemplo o caso de Denise Scott Brown. "Já era arquitecta com obra construída e trabalhos publicados quando se casou com Robert Venturi. Os dois trabalharam sempre em conjunto, mas a obra dela ficou completamente obliterada. E, quando Venturi foi distinguido com o Pritzker, em 1991, o prémio deixou de fora Scott Brown", lembra.
A imagem da profissão está ainda muito associada aos projetos, deixando de fora todo o trabalho realizado por arquitectos na investigação, docência ou nas autarquias, acrescenta. Uma História da arquitectura escrita por homens e baseada na excecionalidade também tem contribuído para apagar o papel das mulheres. "Há uns anos, com os meus alunos, decidimos criar uma entrada na Wikipédia sobre a Maria José Estanco, a primeira mulher diplomada em arquitectura em Portugal. Ela só desenhou uma casa, mas foi sempre professora. Na altura, a entrada foi recusada e a justificação era a de que não era relevante. O facto de ser a primeira não contava!", recorda Patrícia Santos Pedrosa.
Um estado de coisas que potencia as repetidas situações de assédio moral e sexual de que são vítimas as mulheres arquitectas, num ciclo que começa ainda durante a licenciatura, acusa Patrícia Santos Pedrosa. "É algo que é sabido, há relatos, mas não há processos", diz a dirigente da Mulheres na Arquitectura, para quem o facto de a arquitectura continuar a ser uma profissão "elitista e muito hierarquizada", a precariedade e a falta de "instrumentos de transparência" facilitam este tipo de situações.