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O horror na sociedade do espectáculo

Um dos maiores escritores britânicos do século XX, J. G. Ballard, foi um dos mais atentos observadores da transformação da sociedade de consumo e das suas distorções. “Crash” é um excelente exemplo.

20 de Agosto de 2016 às 12:30
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J. G. Ballard, "Crash" Elsinore, 233 páginas, 2016



Quando foi editado originalmente, "Crash" foi colocado na margem da pornografia. Os hábitos britânicos eram, nessa altura, muito pouco acolhedores ao universo da relação dos carros (e da tecnologia) com o sexo. Mas, passados tantos anos, é evidente que este é um romance fundamental para percebermos o nosso próprio mundo nos dias de hoje, quando estamos cercados de tecnologia e o mundo virtual ameaça tornar o real uma abstracção.

Através de Robert Vaughan, que lidera uma legião de adoradores das possibilidades eróticas dos desastres de viação, Ballard conduz-nos ao perverso universo do automóvel e ao lugar que ele foi ocupando na vida dos seres humanos. Vaughan morre, claro, mas, como explica o narrador: "Para o Vaughan, o acidente automóvel e a sua própria sexualidade tinham convergido num enlace derradeiro. Lembro-me de o ver à noite, com jovens nervosas sentadas nos bancos traseiros de carros desfeitos e abandonados em sucatas, bem como as suas fotografias em posições sexuais constrangedoras."

O encontro do corpo com o carro é divinizada: "Essa obsessão pelas possibilidades sexuais de tudo o que me rodeava desencadeara-se na minha mente como resultado do acidente. Imaginei a enfermaria repleta de vítimas em convalescença de um acidente aéreo, cada mente delas um autêntico bordel de imagens. A colisão entre os nossos dois carros representava uma união sexual suprema e nunca antes imaginada." O horror choca aqui também com a sociedade do espectáculo, como se sente quando assistimos à descrição das luzes dos carros da polícia junto aos acidentes. Não por acaso surge Elizabeth Taylor, na altura uma diva entre as divas, antecipando o mundo dos famosos e das celebridades e das suas tragédias. Como se Ballard já antecipasse a morte da princesa Diana.

Junta-se aqui o sexo à tecnologia num princípio muito rock'n'roll ("to fast to live, too young to die") que se vai aplicar também às mortes em acidentes de carro que marcaram as sociedades no seu tempo: a de James Dean, a de Grace Kelly. Tudo parece chocante na forma como Ballard vai descrevendo aquilo que é a morte e a apetência por ela, no meio de um qualquer prazer inumano que percorre a diabólica vida de Vaughan.

Na obra de Ballard defrontamo-nos sempre com a forma como a tecnologia (e a sociedade de consumo a ela associada) penetrou nas nossas vidas e como nos domesticou. Ou seja, a ruptura com essa mansidão acaba sempre por ser de uma violência extrema, porque as classes médias se tornaram acomodadas. Em "Crash", isso é levado ao limite, mas em toda a obra de Ballard é evidente que há uma substituição dos deuses do passado pelos da tecnologia e do consumo.

No mundo de Ballard, espelho das nossas actuais sociedades, tudo muda num instante, as máscaras caem, os papéis que desempenhamos e que se tornaram redundantes. E, tal como antes fizera Joseph Conrad, mostra-nos, sem disfarces, como por trás de regras definidas pelas sociedades, os seres humanos continuam a ser forças violentas e predadoras. Isso está no nosso ADN, só que mais sofisticado. Ballard olha para o mundo vertical que fomos construindo e esclarece-nos que ele não é diferente do que foi em sucessivos períodos da nossa história: acaba sempre por colapsar. Ballard, há 40 anos, vislumbrava a sociedade egoísta que hoje vivemos, onde não há luta de classes, há apenas guerra tribal de luta pelo espaço individual próprio. Neste mundo em que as pessoas fogem umas das outras, seja através das tecnologias ou dos condomínios, "Crash" antecipava o presente.
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