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Maria Ferreira dos Santos: Temos de aprender a trabalhar com o fogo e não contra ele

A bióloga Maria Ferreira dos Santos, especialista em Desenvolvimento Sustentável, defende que o fogo não pode ser visto pelos portugueses como um inimigo, mas como uma inevitabilidade com a qual terão de lidar. Para a professora da Universidade de Utrecht, na Holanda, as estações do ano tradicionais são coisa do passado. Isso obriga a uma gestão diferente dos meios de combate e prevenção a incêndios.

Bruno Simão
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Os fogos deixaram uma grande parte do território interior do país pintado de preto. O que é que tem de mudar a partir de agora?

Em termos de clima, é muito importante manter as florestas porque as florestas e os ecossistemas, em geral, capturam carbono. É por existirem essas florestas que conseguimos dizer que cumprimos o Acordo de Paris. Um dos grandes pontos desse acordo é manter o aumento médio da temperatura a cerca de 1,5 graus centígrados e, para alcançar essa meta, é necessário capturar carbono e reduzir as emissões.

 

Mas isso não está a acontecer. Segundo a Organização Meteorológica Mundial, a concentração de dióxido de carbono atingiu um novo recorde.

Sim, isso é verdade, mas há vários factores que contribuem para tal. Desde logo, as negociações de Paris são voluntárias, não há um acordo político oficial para reduzir as emissões de dióxido de carbono. E a decisão política demora tempo até passar à implementação das medidas de captura ou de redução de emissões. Outra coisa a ter em consideração é que o dióxido de carbono não se reduz imediatamente na atmosfera. Quando é emitido, mantém-se na atmosfera algumas décadas. É por isso que se prevê que haja um ciclo maior e que ainda estejamos numa fase que, mesmo que terminássemos neste momento todo o tipo de emissões, elas ainda continuarão a subir nos próximos anos. O que actualmente se está a falar na comunidade científica é que já não é suficiente parar. As pessoas nunca acharam que as alterações climáticas fossem um tema actual. Era sempre um tema do futuro. Mas é preciso pensar que elas são cumulativas de uma forma não linear. Isso significa que, se amanhã se atingir um novo máximo de dióxido de carbono na atmosfera, há certos processos que não conseguimos prever completamente. E, portanto, é preciso agir já.

 

As pessoas nunca acharam que as alterações climáticas fossem um tema actual. Era sempre um tema do futuro. 

 

Os incêndios deste ano em Portugal são resultado das alterações climáticas?

Estão de acordo com as previsões que temos. É preciso lembrar que os modelos são feitos em médias de 30 anos, para excluir certas situações climáticas. Os modelos para Portugal são de um Verão mais prolongado, temperaturas mais elevadas e decréscimo de precipitação. Isso vai obrigar a repensar as estações do ano. Vai obrigar a não pensar numa estação como uma estação balnear, mas de acordo com os dados meteorológicos. É preciso começar a pensar numa gestão para uma irregularidade. Se sabemos que vai existir um período de seca prolongado, temos de ter a capacidade de responder, de criar um banco de serviços que possam ser chamados quando há necessidade.

 

Isso já foi feito noutros países? Ou ainda estamos todos a aprender?

Estamos todos a aprender. Também houve fogos na Califórnia, que é outro clima mediterrânico. A Califórnia acabou de sair de uma zona de seca. Todos os ecossistemas estão muito frágeis e muito secos. Portanto, qualquer ignição queima muito intensa e rapidamente. Em Portugal, aconteceu o mesmo. Os solos estão muito secos e há aquilo que se chama uma "escada de materiais para queimar". Antigamente, cortavam-se os ramos dos pinheiros até certa altura. Neste momento, não se cortam e existem matos. Portanto, cria-se uma escada para o fogo subir. E depois o fogo é muito intenso e passa muito rapidamente. Nalguns lugares, as copas das árvores não arderam muito, secaram por causa da temperatura, o que ardeu foi todo aquele subsolo. Está tudo muito seco. Pessoalmente, acho que os fogos vão ser a norma.

 

Os portugueses vão ter de se confrontar com isso?

Não gosto dessa palavra [confronto]. Os portugueses têm de viver com isso. Moro na Holanda neste momento. Lá, os habitantes vivem com a água. Sempre tiveram imensos problemas, a água existe em excesso. Em vez de falarem em "confrontar e combater" a água, vivem com a água, trabalham com a água.

 

Mas como é que se pode viver com o fogo?

Pode gerir-se a floresta de forma a mantê-la ordenada. É preciso manter os corta­-fogos limpos, manter as estradas com as distâncias regulamentares, fazer queimadas na altura própria para reduzir o material combustível. Há que pôr em prática medidas de prevenção, quer na floresta pública, quer na privada, que impeçam que o fogo se propague desta forma tão rápida como observámos. Sabemos que as nossas florestas vão secar, quer por redução da precipitação, quer por aumento da temperatura. Vamos observar que as árvores e os nossos ecossistemas vão estar um pouco mais sensíveis ao fogo. As florestas mediterrânicas, evolucionariamente, necessitam de fogo. Os pinheiros requerem o fogo. Há muitas plantas que, antes de germinarem, precisam de fogo. O fogo é um elemento natural. Temos de aprender a trabalhar com ele e não contra ele.

 

Que riscos corremos neste momento em termos de clima e de contaminação de águas?

Sofremos um risco grande se as chuvas vierem com muita intensidade. Isso vai levantar muito do solo superior que está queimado e muito solto e vai trazer consigo toda aquela cinza e carbono queimado que está no chão das florestas para as nossas barragens e para os nossos rios.


 

Há necessidade de reorganizar e repensar o território. Que tipo de ordenamento seria adequado para o interior do país?

Eu apostaria o mais possível nas espécies nativas, carvalhos com pinheiros. Porque são espécies que estão adaptadas ao fogo. Obviamente o eucalipto tem uma função económica muito importante no nosso país, que tem de ser tida em consideração. Há estudos que demonstram como é que se poderia gerir a floresta e, por mim, iria por uma fundamentação mais científica, com base nestes modelos de "fire spread". É preciso tentar perceber quais são as zonas que têm maior probabilidade de ignição e, aí, evitar certo tipo de plantações, nomeadamente o eucalipto. Depois, em termos de gestão, é importante que as plantações, quer privadas quer públicas, sejam limpas, tenham uma gestão cuidada e que haja uma monitorização eficaz. E há necessidade de uma vigilância, um sistema de comunicação que funcione efectivamente e que permita detectar o fogo o mais rapidamente possível. E, por fim, é preciso que se possa aceder a essas zonas com alguma rapidez, com os meios aéreos, obviamente.

  

Em relação à sustentabilidade, como é que se pode captar pessoas para o interior do país com base na floresta?

Em termos de sustentabilidade, a floresta funciona por si própria. É mais a questão de, por exemplo, se criar um sistema de monitorização em que as pessoas sejam compensadas por estarem na floresta simplesmente a patrulhar. Isso pode ser um modelo de negócio que, neste momento, não existe. A aposta tem sido no turismo rural. Depois, a floresta dá madeira e papel, pode haver algumas plantações de espécies ornamentais, como o rosmaninho e a alfazema, pode haver mel. Falamos de coisas de pequena escala. Depende do estilo de negócio que se queira ter. Como é que se atraem pessoas para a floresta? Tem de se criar formas de tornar "fashionable" viver na floresta, tem de se criar outro tipo de condições para que as pessoas se sintam confortáveis. Onde está o conforto mínimo? Está na saúde, está na educação. Também é importante ter acesso a cultura e serviços públicos. Eu sou de Trás-os-Montes. Agora, a situação está um bocadinho melhor, mas lembro-me de haver uma altura que em Vila Real, a capital de distrito, não existiam certos serviços. Tinha de se ir ao Porto. Enquanto todos os serviços não existirem, é difícil atrair pessoas para o interior. Hoje, quase todas as pessoas já têm carro, mas aí entramos num conflito com a sustentabilidade. Porque, para nos deslocarmos, emitimos dióxido de carbono....

 

Já não é suficiente parar as emissões de dióxido de carbono. 

 

Sendo Portugal um território pequeno, é mais fácil gerir a sua floresta?

Em teoria, sim. Na prática, vai depender. A gestão passa por saber quantos agentes estão envolvidos. Não estou apenas a falar de agentes como o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, falo também dos privados e de todas as pessoas que dependem da floresta. A gestão tem de passar por todos, não passa só pelo Governo. Passa pela indústria papeleira, não passa só pelos bombeiros. Tem de envolver todos os cidadãos. Todos precisamos da floresta. Em termos de captura de dióxido de carbono, estamos muito bem porque temos uma área florestal enorme. Devemos continuar a tê-la dessa forma. As populações deveriam ter uma voz activa, não só através da eleição dos seus representantes, mas também nos processos participativos que envolvem os diferentes "stakeholders". Nesta altura, seria bom ouvir um pouco as ideias das pessoas. É importante envolver os cidadãos porque são eles que estão no campo, são eles que têm ali a sua casa e as suas vivências.

 

Em relação à Cimeira do Clima que está a decorrer em Bona, na Alemanha, o que espera que seja acordado?

Espero que haja um acordo entre todos os países (menos os Estados Unidos, e não sei onde é que a China se colocará) de medidas mais drásticas para as emissões negativas. As alterações climáticas têm que ver com energia, de onde vem a nossa energia, se é do carvão, do petróleo, se é de biomassa, etc. São necessárias fontes de energia mais eficientes, que não emitam tanto dióxido de carbono. E precisamos de sistemas de produção de comida que não impliquem deflorestação. Os países vão ter de começar a pensar muito mais seriamente no que é que cada um pode fazer. A questão não é que os governos não queiram fazer algo, é saber se querem fazer o suficiente, é preciso pensar em tomar medidas radicais. É necessária coragem política.

 

Isso toca muito nas questões ligadas à mobilidade.

Sim. Primeiro, é preciso saber de onde vêm as nossas grandes emissões. E depois é necessário pensar: se queremos continuar a emitir a este nível, onde é que vamos buscar as emissões negativas? Onde é que vamos capturar carbono? Imaginemos um cenário. Este parque automóvel emite determinada quantidade de dióxido de carbono e inclui-se também a indústria. Onde é que temos as nossas florestas? Que outras medidas podemos implementar para subtrair as emissões para ver se conseguimos fazer a zero ou, de preferência, ir a negativos? Ninguém está a dizer para toda a gente parar de repente. As pessoas precisam de coisas, precisam de recursos naturais. A questão está em planear este equilíbrio, que tem de ser um pouco mais para o negativo do que para o zero. Neste momento, já não pode ser um balanço zero. Estas decisões são difíceis de tomar. Podemos dizer: ok, às segundas e às quartas ninguém conduz em Lisboa, e às terças e às quintas ninguém conduz no Porto. Isso permite que, se calhar, haja uma indústria a emitir mais aqui ou ali. Todas estas contas têm de ser feitas. 

 

Temos de tornar "fashionable" viver na floresta, criar condições para que as pessoas se sintam confortáveis [no interior do país].  

 

Há várias cidades europeias que já fizeram restrições de trânsito, por matrículas, por exemplo. Isso é eficaz?

É, quando se tem uma densidade populacional muito grande. A Holanda decidiu transitar para as bicicletas porque percebeu que as cidades estavam muito poluídas por terem tantos carros. Na altura, não se falava tanto de dióxido de carbono. E outros países também têm estado a aplicar medidas desse género ou têm adoptado, por exemplo, o "carsharing". Todas estas ideias da "sharing economy" têm que ver com isto. Todas essas coisas ajudam. Os nossos padrões de consumo e de utilização têm implicações. Não sabemos a 100% quais são essas implicações. Podemos entrar em muitos sistemas que não sabemos controlar e que não conhecemos o suficiente. Por isso é que os cientistas têm estado a falar tão veementemente. De um momento para o outro, podemos quebrar certos funcionamentos que são fundamentais para o ar que respiramos, para a comida que comemos, para a energia de que precisamos. Há razões para crer, atendendo ao conhecimento que temos de como é que o nosso planeta funciona, que se continuarmos a viver desta forma, colocamos em causa os próprios sistemas que nos sustentam. O que achamos é que ainda há tempo para agir. Com alguma coragem política. 

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